23 de dez. de 2010

De volta

- Na verdade, você não me quer de volta.

Foi preciso todo esse tempo pra reunir os joelhos e organizar o prumo. "Ela está certa" pensou numa voz interna que se tivesse som traria uma entonação pra variar.

"Eu não te quero de volta. Eu quero de volta quem eu era do teu lado."

20 de dez. de 2010

Eu te quero

Eu sempre te quis. Não te amo mais, não quero mais morar ao seu lado. Mas eu sempre vou te querer. Você não entendeu isso. Fez sentido. Mas não mudou em nada isso. Você me chamou de canalha. Depois se arrependeu, me trouxe ao nível de leviano. Meses depois, imaturo. Hoje você diz que sou apenas efêmero, deliciosamente efêmero. Eu desci na escada das suas gradações masculinas como um menino arteiro. Eu nunca te contei, mas cai muitas vezes entre esses degraus. Acha que meu joelho não pegou sangue quando fui de canalha a leviano? O sangue não obedece o tempo, só o coração. Sempre que te encontro, repito nosso mantra: Eu te quero. Você sorri. Quando está solteira, você cede. Quando está comprometida, você cede mais ainda, mesmo não voltando pra casa comigo. Foram anos dessa sua narrativa de mim. Essa minha covardia poética. Esse deslumbre tímido. Por dentro, sempre me orgulhei por ser alguém tão pequeno e feio e conseguir dispender tanta energia tua. E de algumas outras, antes. Algumas outras depois. Mas só a tua energia me trouxe luz. Eu não te amo mais é o novo Te amo para sempre. Eu não te amo mais, porque seria impossível. Se fosse possível, te juro, falaria apenas: Não consigo te amar menos. E talvez você entendesse meu recado. Eu te quero. No meu mundo isso é mais romântico do que qualquer carta prolixa que eu te escreva. Ou qualquer dança em plena rua, com sussurros passionais no seu ouvido esquerdo. Internamente, eu decidi que o seu ouvido esquerdo seria o desleixado. Aquele que receberia sem discernimento o que me desse vontade. O ouvido direito receberia sempre algo que tivesse passado por muito pensamento, cuidado, reflexão. Durante todo esse tempo, eu só te disse uma coisa no seu ouvido direito.

Eu te quero.

Mas eu não te amo mais. E me despeço subindo a rua dos cinemas de pessoas inteligentes, desviando de toda sorte de gente, com azar para tropeçar em minha própria trajetória. Quando eu não estiver mais aqui, peça uma bebida que você nunca experimentou e lembre-se de mim com carinho. Lembre-se que eu sempre te quis. Depois, jogue isso em algum vão da memória e faça como você sempre fez: me observe com esse olhar incapaz de se aproximar.

E assim segue, o homem-menino regido por suas motivações preciosas, mas tropeçando na inércia da sua masculinidade.

Eu não te amo mais. Nunca e mais.

12 de dez. de 2010

Nome errado

Ela passou a noite inteira tentando chamar minha atenção. Mas estava chamando pelo nome errado.

7 de dez. de 2010

Isso

Ao invés de lembrar, minha memória cria.

Estéril

Essa felicidade que vem logo depois da tristeza, como um suspiro, um susto, um grito, é uma felicidade estéril. É legal, mas não se reproduz.

5 de dez. de 2010

De existir

Antes de ir embora, eu toquei sua mão como um adolescente que encosta o dedinho na mão amada no escuro do cinema torcendo para que ela não desencoste. Se ela deixasse, sinal verdade. A permanência, ainda que completamente imóvel, era a mais vigorosa declaração de amor.

Ela me olhou bem fundo e durante aquela que foi sua única frase na noite, o toque se tornou um carinho afetuoso. Ela disse com a convicção de quem não tem nada a perder, sede de tudo ganhar.

- Eu nunca desisto do que ainda não existe.

4 de dez. de 2010

Epifania na TV

"Estamos todos presos do lado de fora de um abraço.
Cada um de nós ouviu de uma mulher diferente:
Vai viver a sua vida!
Vai viver a sua vida: pena de liberdade perpétua."

Luiz Fernando Carvalho possui um trabalho baseado profundamente em duas palavras: afeto e rigor. De maneira leviana, em outras constituições semânticas, pode-se pensar um leve conflito. Mas em Luiz não há. No cinema e na TV - mesmo na epóca de suas novelas - tem sido o trabalho dele o que mais tem pautado minhas aspirações, meus encantos e minhas inquietudes nesse tear audiovisual.

Michel Melamed é um enfant terrible. Tomou as rédeas da sua carreira e disse: eu quero ser um cavalo selvagem. Livre. E selvagem. Poeta, ator, criador.

Uma reunião de clichês amorosos, reunidas em espasmos de experiências falidas e romances idealizados - em ambos universos masculino e feminino - numa coreografia poética e debochada. Tudo isso com vigor, encanto e dor. Num percurso que não visa responder de maneira alguma a provocação do seu título. É como se a série fosse, como um todo, um grande personagem mergulhado nesse caminho de viver e se conectar com o outro.

Afinal, o que querem as mulheres?

3 de dez. de 2010

A noite e a mulher

A noite/1
Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.

A noite/2
Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.

A noite/3
Eles são dois por engano. A noite corrige.

A noite/4
Solto-me do abraço, saio às ruas.
No céu, já clareando, desenha-se, finita, a lua.
A lua tem duas noites de idade.
Eu, uma.


Eduardo Galeano

1 de dez. de 2010

A vida

Essa não era a vida que ele esperava.

Demorou um bom tempo para entender que esse tinha sido problema: ele ficou esperando.

Jiraya

Eu nunca soube lidar direito com a admiração que meu avô depositava em mim. Não era uma coisa boba de avô. Ele enxergava o que eu podia ser. Eu tinha 7 anos e estava profundamente convencido que eu podia me tornar o discípulo de Jiraya na Bahia. Em Jequié, no sítio dele, um belo dia, peguei um facão e sai obstinado para provar todo meu talento. Decepei metade de uma plantação de mamona. Com golpes que dariam orgulho ao próprio Jiraya. A adrenalina tinha me embebedado e perdi a noção do estrago. O caseiro descobriu, me deu uma primeira e tímida bronca. Lembro de seguir numa fila de broncas. Ela foi aumentando. Minha avó balançava a cabeça e berrava de um jeito que enfim, eu percebi rapidamente a gravidade do que tinha feito.

Depois de todo aquele julgamento severo, minha respiração angustiada, me afastei e me encolhi. Alguns instantes depois, meu avô chegou perto de mim. E me olhou com aquele olhar impossível de descrever e me perguntou:

- Por quê você fez isso?
- Porque eu vou ser o jiraya - respondi.

E nesse momento, minha infância foi decepeada em duas metades. Antes e depois. Ele simplesmente respondeu:

- Mas você tem que ser Jiraya do portão pra fora. Aqui dentro você finge que é meu neto.

Eu vou passar o resto da minha vida tentando ser uma pessoa melhor por causa daquele olhar do meu avô. Mesmo ele não estando mais aqui, de corpo presente, minha memória está tatuada com aquele olhar. E lidando com essa angústia de ver o tempo passando e perceber que eu continuo distante da direção que aquele olhar apontava.

29 de nov. de 2010

Não há silêncio que não termine

"Si no se saben mis palabras
no dudes que soy el que fui.
No hay silencio que no termine.
Cuando llegue el momento, espérame,
y que sepan todos que llego
a la calle con mi violín"

Neruda

28 de nov. de 2010

Escritores baianos

Está por Moçambique, Angola e Cabo Verde os melhores escritores baianos da atualidade. Volto a dizer. Não há qualquer desprezo com os escritores contemporâneos nascidos na Bahia. Mas todo mundo sabe que ser baiano não é simplesmente nascer na Bahia. Verger e Carybé provam isso. E há tantos que nascem na Bahia, por uma mera circunstância, sem qualquer envolvimento com o significado e identidade que isso implica. Termino agora de ler Ondjaki, de Angola, e esse ano Agualusa, Pepetela e - sempre - Mia Couto também frequentaram minhas leituras. Não consigo parar de reconhecer a baianidade neles.

"Antigamente as pessoas eram pessoas de chegar. Não sabíamos fazer despedidas."
Os da minha rua, Ondjaki

4 de nov. de 2010

Salvador

Ao trazer um inevitável olhar estrangeiro mesclado com o profundo sentimento de pertencimento a esta terra, me sinto o amante perfeito: aquele que por saber a melhor hora de partir, compartilha com sua parceira infiel o mistério efêmero que envolve a felicidade.

2 de nov. de 2010

Para Alice

Esse não é um blog de política. Talvez, depois de tantos anos, tenha se tornado um blog sobre nada. E só permanece por um motivo básico: construiu um vínculo que eu respeito muito, entre as pessoas que reconhecem aqui um espaço em comum para comungar sobre esse nada.
Acabei de receber um comentário, pouco respeitoso, ao qual irei reproduzir aqui. Veio de uma Alice, que por não ter se identificado melhor, não pude respondê-la diretamente.

"O que tem de beleza e sensatez aqui estraga quando se mete a comentar política. Babar ovo de políticos que trouxeram a corrupção institucionalizada no governo passado tira seus créditos. Aplaudiu muito O Palocci e até o Sarney que resolveu aparecer abertamente agora? E o Collor? Realmente, TER que votar em um menos pior é nosso dever de cidadão, mas defender corja de corruptos como fez e ainda faz me soa deprimente. E não tenho partido, não se trata de rivalidade partidária. Era uma fã. Não vejo coerência mais nas suas falas. Ficar torcendo pra politicagem e desonestos é vergonhoso. Boa sorte."

Eu quero continuar deixando esse blog um terreno isento do assunto político - dessa politicagem de partidos, nomes, manchetes, por uma questão simples: dou vazão a minha expressão política em outros lugares. Mas ao mesmo tempo eu não me senti confortável em simplesmente desconsiderar o comentário. Então a exceção fez sentido para mim.
Não vou responder aos pormenores. Até porque tem leviandades, preconceitos e de fato, nem como crítica política o comentário conseguiu encontrar consistência. Esse maniqueísmo insuflado por ambos os lados foi muito prejudicial para todos nós. Eu votei em Dilma Roussef para presidente da República. Possuo uma história pessoal e enquanto sujeito político que se aproxima muito dos rumos que o Governo Lula traçou. Isso não diminui em nada meu espírito crítico em relação a sua gestão. Assim como não diminui em nada a minha admiração por aqueles que discordam completamente dessa minha opção política. Como não postei nada dentro desse âmbito da política partidária ou eleitoral aqui no blog, provavelemente algo no meu twitter, que é afixado aqui no blog, deve ter expressado essa minha opinião.

Cara Alice, só posso lamentar a energia que você precisou mover para fazer esse comentário. Eu busco escolher com muita propriedade as pessoas que admiro - e o faço além e aquém das suas escolhas políticas, religiosas ou futebolísticas. Vergonha, eu sinto, de quem não consegue fazer o mesmo.

23 de out. de 2010

Uma casinha na Vila Anglo

Eu queria começar esse texto como se estivesse começando uma vida. Mentira. Eu queria começar esse dia como quem começa um texto. Com uma idéia do que pode ser. Uma semente. E mergulhar na própria semente, como se fosse possível sentir o prazer da colheita no próprio semear. Hoje é um dia comum, mas diferente de todos os outros. Estou aqui sentado numa casa nova, ouvindo o zumbido da geladeira. Talvez pela falta de móveis, talvez pela geografia íntima da casa, que faz a cozinha o coração da casa, o fato é que o zumbido da geladeira se espalha com facilidade. E subitamente, o barulho para. Pois é intermitente. E dá espaço para o som dos passarinhos que estavam ainda num canto sonolento de quem acaba de acordar.

Essa é uma descrição sem muito charme do que se apresenta nesse instante. Diante dos meus olhos, no ritmo pacato da minha respiração. O que me motivou a escrita não foi nenhuma idéia. Quando não há semente disponível, ainda há um movimento possível. Levanto, passeio e volto.
Agora eu moro numa casa em que posso passear dentro dela. Eu vou na sala com a esperança de me surpreender de mim. Ou voltar com algo novo na cabeça. Eu trouxe meus joelhos para acompanharem com isenção tudo aquilo que minhas pernas tem passado. Mas a isenção é uma falsidade complacente. O joelho foi o meu parente que mais gostou da nova casa. Ao tentar explicar para o resto da família, ele apenas diz: Só sabe quem sente.

30 de set. de 2010

Pessoa hoje

Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Fernando Pessoa

21 de set. de 2010

A objetividade e a fragilidade

Era uma noite chuvosa, a passagem de volta dele já estava comprada, não havia nenhum frescor naquele vento carioca que atestaria uma mudança de rota. Mas isso é Rio de Janeiro. Não muito longe, na mesma rua, era possível enxergar a placa de um hotel, ali em pleno Catete. Ele olhou em direção a placa, e ficou imóvel, até ela estranhar e olhar na mesma direção. Apenas com um olhar, ele fez o convite para a noite. Mas não era uma história simples, um olhar não iria resolver tudo. Foram horas intensas de suor escorrendo pelo coração ao som daquele samba dolorido. Então ela rompeu o silêncio com uma objetividade raríssima no universo feminino.

- Me dê um motivo para eu dar o próximo passo, e esquecer de toda a dificuldade que vai vir.

Depois da sacada magistral daquele olhar, a expectativa era alta. Ele poderia ter se fortalecido em sua condição e talvez uma boa citação poética resolvesse. Mas diante da objetividade feminina, ele percebeu que só existia um caminho: a fragilidade masculina.

- Eu preciso de um motivo para acordar amanhã. Não consigo imaginar nenhum outro motivo que não seja você.

19 de set. de 2010

18 de ago. de 2010

Shake

"Nisto é que consiste a monstruosidade do amor: em ser infinita a vontade e limitada a execução; em serem ilimitados os desejos, e o ato, escravo dos limites."

Shakespeare

10 de ago. de 2010

Linguagem

Existe um desejo que não termina no corpo. Um desejo que inicia-se com fome e pressa, mas depois percebe-se sentindo, só querendo sentir-se e sentir mais. Existe um desejo que, ao reconhecer o sagrado do corpo, resolve não buscar seus limites na superfície. E sim, mergulhar onde o corpo não existe mais, no ilimitado das sensações. O corpo vira uma linguagem em comum, para se comunicar paixão. O desejo se torna apenas um sotaque. Gostoso de ser ouvido.

12 de jul. de 2010

Não era pra ser

Toda frase inteligente surge de uma certa ignorância.

Não há delicadeza plena que não tenha sentido o gosto da grosseria.

4 de jul. de 2010

Meu retrato é silêncio



Eu estive perto do que não sei. Ao voltar, não consegui mais me adaptar.


Era assim que gostaria de ser lembrada. Porque todos querem ser lembrados. Um rascunho traduzia a memória do seu desamor. Um homem um tanto triste cercado por sua pequena plantação de verdades e sabedorias. Frustrado e solitário.
O que não se sabe é sempre uma outra pessoa. Essa estranha perspectiva: o outro revela inclusive o que não se sabe sobre si. Casada com a sua própria impossibilidade, permanecia o desejo de ser lembrada.

Sozinha, sabia demais. Assim faltou espaço pra mais, nada.

Foto: Tiago Lima

29 de jun. de 2010

Eu posso ser feliz

Um homem gordo acordava todo dia e chegava na varanda do seu apartamento no centro e gritava: "Eu posso ser feliz."
Se algum vizinho ou transeunte reclamasse, ele repetia. Era capaz de repetir insistentemente para reagir a cada reclamação. Reativo, até quando o céu estava acinzentado, ele tomava as dores. E repetia o grito.

Isso ocorreu durante anos e aquela história corria os quarteirões. A rua do gordo que pode ser feliz.

Ontem o gordo, já meio emagrecido, com uma cara visivelmente abatida, chegou na varanda, olhou para os lados e para o céu. Ontem fez um solzinho até. Ziltino da padaria, lá embaixo, deixou o pão na chapa e colocou a cara pra fora, estranhando a ausência do grito.

O gordinho se jogou lá de cima. Nem gritou nada.

O silêncio engoliu a rua. Estava todo mundo impactado, sem saber o que dizer, como reagir. Nem o Tião piadista conseguiu improvisar uma anedota a tempo. Calou-se. Quem estava ali podia jurar que o silêncio nunca mais iria embora.

Até que uma senhora velhinha, a vizinha do gordinho, chegou na varanda dela e gritou: "Eu também posso ser feliz."

28 de jun. de 2010

Beijo no guardanapo

Ela deu um beijo no guardanapo, sorriu com a suavidade de quem sabe usar um batom rosa e partiu. Uma espécie de cartão-de-visitas, com uma certa intimidade. Numa fração de instantes, aquele jovem deixara de ser o geniozinho tímido e muito doido e surgia na condição de profundo especialista em mulheres bonitas e interessantes.

No guardanapo, não tinha sequer um numero, uma dica, nada escrito. Ela mudou a vida daquele jovem pra sempre, mas eles nunca mais se encontraram. Ela preferiu apostar tudo num pequeno gesto. O encanto virou um rastro na memória.

18 de jun. de 2010

Jovem, velho, morto.

"Nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe."

Em A Caverna de José Saramago.

Bilhete

Sílvia,

O coração é feito de bilhetes. Por mais que seja organizado em romances, televsionado em novelas ou espetacularizado em filmes. Esses, nada mais são, que bilhetes. Tive vontade de te escrever exatamente porque não sei quase nada sobre você. Nesse espaço que pouco sei, preenchi com seu nome e o carinho da sua admiração. E inventei um bilhete para esse anonimato que me reconhece.

Minha vaidade é uma companheira ausente. Ao ser tocada, sua ausência se desespera. Permanece a delicadeza do toque. Obrigado pelos olhos.


17 de jun. de 2010

Aipim

Aipim curava os meninos com música. Isso, digo eu, que insisto em adesivar bonito o que nasceu sem intenção pra vestir-se com cola. Ele surgiu de uma família de músicos, dos tipos diversos, daqueles com escola até os descolados. Mas ninguém falava "música". Existe um olhar dentro da família de Aipim que significava isso. O olhar anunciava e o corpo mexia bonito, de leve, rasteiro, introduzindo a primeira intenção de dança. A dança é o corpo sendo música. É no corpo que a música faz trampolim. E é sobre ele que ela desce quando volta do vôo.
Um menino chegou desavisado com a doença de não gostar do seu pai. Todos diziam que era doença incurável, maldita, e pior falando, era uma lepra calibrosa que botaram no menino, como se ele fosse a origem e o sintoma da desgraciosa doença. Aipim respira um ar pequeno, possui uma humildade quando divide o ambiente com mais alguém. O menino chegou querendo quase não precisar mais existir. Como se ele tivesse passado a infância inteira correndo de esconde-esconde e acabara de chegar. Ainda guardava um pouco do cansaço da primeira vez que chorou na vida. Aipim passou a mão na nuca do menino e disse: Você gosta de amanhã?
O menino tinha tudo para nem entender. Mas nem entender já era demais pra ele. O menino respondeu: Quando eu penso que amanhã não vai ter pai, gosto de verdade.
Aipim fez o olhar. Iniciou a dança. E compartilhou com o menino um sonzinho, que começava simples na boca, movia pelos braços, que pediam um batuque, desses de leve.
"Amanhã nunca tem pai. É sempre filho. Mas diga aqui entre nós todos dois - Tem palavra esse desgostar?"
O menino mostrou umas feridas de sempre. De ontem, anteontem, de anos atrás. É de sempre antigo, ainda há o de sempre que quer ser.

Aipim batucou um pouco mais. E finalizou:

- Ainda te sobra um bom punhado de amanhãs pra serem gostados sem feridas. A dor parece que vem pra aquietar a gente. Mas é traquinagem dela. A dor vem é pra gente pegar impulso.


16 de jun. de 2010

Pode e não pode

"Não saber para onde ir, pode. Deixar de ir para onde se sabe, não pode."

Ela segurou aquele bilhetinho escrito com letras pequenas e bem acabadas, letras de fôrma, numa tentativa de não revelar nenhum traço da personalidade do autor. Eu vi seu rosto angustiado, tentando encontrar um lugar seguro para repousar o olhar. Durante alguns instantes, achei que ela tinha acabado de receber a pior notícia do mundo. No instante seguinte, ela abriu um dos maiores sorrisos que eu já vi na vida, largou o bilhetinho na rua e saiu correndo. Correu, correu, correu. Lá longe, avistei ela dando um abraço em alguém.

Recolhi o bilhetinho e rapidamente me veio o desejo de que pudesse acontecer a mesma coisa comigo.

Voltei pra casa com o bilhete.

5 de jun. de 2010

Cores


As cores possuem o poder vertiginoso da transformação. Uma verdadeira revolução acontece cada vez que elas se encontram em prol de um ideal.

23 de mai. de 2010

Alma

"Há um olhar que sabe discernir o certo
do errado e o errado do certo.
Há um olhar que enxerga quando a obediência
significa desrespeito e a desobediência
representa respeito.
Há um olhar que reconhece os curtos caminhos
longos e os longos caminhos curtos.
Há um olhar que desnuda, que não hesita
em afirmar que existem fidelidades perversas
e traições de grande lealdade.
Este olhar é o da alma."

Nilton Bonder, A Alma Imoral.

15 de mai. de 2010

Mais uma língua

Eu carrego essa alegria de quem é fluente na tristeza. Mais do que uma língua estrangeira, a alegria é sempre um idioma anterior a qualquer coisa, e vem com a força da própria vontade de se comunicar. A alegria surge como as primeiras palavras que consegui falar, quando criança. Um som que saiu da minha boca e foi percebido pelo outro, com algum sentido. A alegria me engana de mim mesmo. Minha tristeza não faz nada. Apenas envelhece junto comigo, guardando algum amor perdido. A tristeza que se movimenta, já não é mais tão tristeza assim.

25 de abr. de 2010

Dialeto do sexo

A fluência no dialeto do sexo indicutivelmente te abre diversas portas. Dialeto precioso, uma língua mais antiga e muito mais global que o inglês. Mas exige-se uma grande sabedoria para entender o contexto, os sotaques e a cultura para encontrar e reinventar o jeito de falar essa língua ancestral.

Mas a língua é só o caminho. O que você quer dizer? Lembro de um jovem artista dizendo ao seu professor de língua estrangeira: mas é muito díficil criar algo original nessa sua língua. E o professor responde: primeiro, preocupe-se em criar algo original. Toda língua possui seus artíficios para traduzir a genialidade.

Essas duas pensatas, juntas, podem até transparecer pouco sentido. Mas é um engano. Saber o que você quer expressar, no dialeto do sexo, traz uma consistência poderosa. A ausência disso atormenta a maioria. Nessa e em outras formas de comunicação. Em diversas línguas. Ao redor do mundo.

Esvaziada, vejo a beleza morrer em silêncio, na sala do apartamento. Não há o que dizer.

17 de abr. de 2010

Voice message

// CENA 18 - Sacada do apartamento completamente vazio - INT. - Fim do dia

Eu só acredito naquilo que sinto, naquilo que consigo me identificar. Quando não me reconheço em algo, ou desprezo ou invejo. A minha profunda inveja é meu jeito de admirar o que ignoro. Mas ainda assim, em ambos os casos, eu acabo afastando. Afasto o que não conheço, diria Caetano.

É por isso, e não por nenhum outro motivo patético que talvez você tenha confabulado, que reajo desse jeito quando você tenta se aproximar, quando você entra em contato comigo, quando você me olha. Existe essa...essa coisa no ar, no seu jeito, uma espécie de bondade, uma generosidade, um sentimento, eu não sei. Eu consigo achar bonito o que não conheço. Mas não quando essa ignorância me enfraquece. Faz com que eu me sinta uma pessoa pior do que eu já sou.

E você...quando você ouvir essa mensagem, sua primeira reação vai ser de compaixão. Todo esse meu palavreado para esconder o simples fato de que eu sou um escroto egoísta. Você vai achar louvável que eu admita isso com tanta propriedade. Mas não é. É atormentador. Porque eu não vou...

BARULHO eletrônico interrompe e finaliza "Your record was sent by the voice twitter in a direct message".

// CRÉDITOS

10 de abr. de 2010

Olhar



Eu acredito no olhar como um dos últimos lapsos de poesia e humanidade, que ainda conecta, de maneira sutil e profunda, as pessoas.

Foto: Tiago Lima

28 de mar. de 2010

conversa de homens pequenos

Três homens pequenos de meia-idade estavam dicutindo sobre a altura de uma jovem paixão que saltitava, viçosa, ali numa avenida com nome de mulher grandiosa - como devem ser as santas. O discurso alimentava uma inveja não-declarada até o ponto em que o garçom do pequeno boteco onde eles se desencontravam anunciou que a bebida amarela de rótulo azul acabara. Ao pequeno estabelecimento e aos três últimos clientes daquela noite sem escrúpulos, restava a última garrafa daquela bebida branca do rótulo vermelho. A transparência do líquido, a aspereza sincera na garganta e o vermelho afetivo do rótulo trouxeram a conversa para o seu devido lugar. Ali, transtornados, compartilharam enfim seu fracasso. Reconhecer o fracasso era inviabilizar qualquer argumento crítico em relação a altura daquela paixão. Da metade da garrafa em diante, já era possível sentir quase um cheiro de admiração. Ou nostalgia travestida. Era uma rua com nome de santa, mas historicamente permissiva com todas as vestimentas do desejo humano. Aqueles três homens pequenos já foram imensos. O menor de todos, finalizou a conversa tocando exatamente nesse ponto. "O que me conforta sobre esse meu tamanho diminuto é que todo homem, por menor que seja, tem a capacidade de ter a altura de um gigante, quando faz possível uma paixão" - disse ele sem nenhuma soberba na voz simples.

"A elasticidade de um homem pequeno, cada vez mais rara, ainda me encanta". Foi o que me contou a dona do boteco, quando terminava de me contar essa pequena historieta.

24 de fev. de 2010

destilado

Eu poderia ter sido isso tudo, mas fui . Isso.

Esse era um epitáfio. No pequeno boteco cultural na frente do cemitério, o aviso completa a jornada entre morte e renascimento: se você não tiver idéias, pode entrar desacompanhado.

21 de fev. de 2010

recorded

"Abrir espaço, esse espaço // um barulho como quem bate no peito // para...não para mim. Para alguém além de você. Abrir esse espaço é organizar esse vazio que costuma atormentar as pessoas. Eu não estou falando em casamento. Quantas pessoas ficam juntas e não abrem esse espaço. Cada um encontra seu jeito, seu jeito de lidar com essas coisas, de dar algum sentido para vida. Mas eu tenho convicção de que esse movimento faz parte de você, esse espaço está ai, te pedindo para fazer algo a respeito. A última coisa que eu posso te dizer, antes de ir embora, é que se você me permitir participar disso, essa será a melhor parte de você."

Gravação cheia de ruídos da rua, feita entre 2001 e 2003.




10 de fev. de 2010

Perturba

“A arte perturba os satisfeitos e satisfaz os perturbados.”
Witold Gombrowicz (1904-1969)

1 de fev. de 2010

Jeneci

Um homem de barba descompromissada fez música da vida da música. Em qualquer outro lugar, aquilo faria o mundo inteiro mais belo. Como foi ali, na Casa das Caldeiras, fez apenas o mundo daquelas pessoas menos feio. Eu fui vazio de mundos e voltei pleno de qualquer coisa.

Uma mulher desistiu

Uma mulher desistiu. Eu retornei com essa frase na cabeça, com fé de que isso seria suficiente para chegar em casa. Um homem que desiste, tristeza. Uma mulher que desiste, desespero.

No meio do caminho, ouvi: Meus olhos não sabem mais discernir o que é homem do que é mulher. Eu não me contive, pois era quase esse tormento que distanciava minha casa.

- O medo cheira igual. Independente do perfume.

Eu não podia jurar que ele era cego, apesar de todo o figurino. Aquilo nunca fez sentido algum para mim. Mesmo sem enxergar, ele acenou a mão na minha direção. Nunca soube se ele dava tchau ou insistia para que eu fosse embora.

24 de jan. de 2010

27

A idade não sabe se traduz o tempo no corpo ou o mundo na alma. Nessa indecisão, celebramos aniversários. Aquele vigor, delicado e agressivo, da infância na ponta do kichute, ainda me rende frutos. Não há qualquer duvida que foi numa bicuda daquelas que cheguei até aqui. A intenção foi chutar pro gol, ou chutar pra frente sem piedade, mas acabou resultando num ótimo lançamento. Recebo a bola quase sem direito a dúvidas. Aprendo, a cada ano, um novo jeito de jogar junto com a idade. O corpo é a decisão da alma.

12 de jan. de 2010

ressucitando

_0 tempo desanimava um pouco as suas pernas. parada, ela possuía aquela beleza que pode matar um homem. ao movimentar suas pernas, ela fazia com que as imperfeições surgissem de maneira cadenciada. assim, nesse desânimo, pude me aproximar. desistir-me em sua vaidade carinhosa de meus olhos. Mas antes fosse perfeição, tudo aquilo, para me proteger e banhar de distância.

_quem quase morre acaba ressucitando um Pouco.

7 de jan. de 2010

Cabeça Branca

Lourival tem aquele cabelo grisalho e a pele anoitecida, com um bigode de vagabundo. Sempre gesticulando muito, foi da orla até o Pelourinho falando. De ínicio, achei que era mais um cobrador de ônibus safado. Adorava mexer com as mulheres. Num exercício inédito, tentei entendê-lo antes de todos os meus julgamentos.
- Ô minha querida, você é gordinha, mas tá ajeitadinha, hein?
Não demorou muito para eu entender que Lourival só elogiava as mulheres desprovidas do repertório convencional da beleza. Um apressado diria: as feias. Minha surpresa não estava nisso, uma vez que gosto é algo amplo, cabe tudo. A questão era a reação que ele provocava nessas mulheres. Lourival era praticamente um investidor tácito na auto-estima daquelas mulheres. Não sai da minha cabeça o sorriso da gordinha. Um sorriso bonito, gordo mesmo, de ponta a ponta.
- Toda mulher tem uma beleza guardada.
No sol do dia-a-dia Lourival era cobrador de ônibus, compositor dessa opereta para as mulheres desajustadas pela beleza tradicional. Na lua das noites ímpares, Lourival era Cabeça Branca, fazedor de sambas tristes na Barroquinha.
- Em terra de carnaval, a tristeza virou quase uma feiura.