25 de jan. de 2009

Olhos de Ressaca



Luis Fernando Carvalho tem o incrível dom de me despertar grandes paixões na tela. Aos 19 anos, quando assisti Lavoura Arcaica, não entendia como eu tinha conseguido ser homem até então sem conhecer Simone Spoladore. Aquela figura dançando na tela enorme, numa Montreal distante, no lançamento do filme. Ali me entendi plenamente desejoso pelo meu sexo oposto.

Outras aventuranças vieram. A última, em Capitu jovem na Globo, a vocalista de uma banda chamada Manacá, explodiu meu coração. Aquele rastro de cabelo, as peripécias desse personagem tão deslumbrante da potência do feminino.

É tão leviano declarar essas coisas, descrever esses sentidos, traçar qualquer rota de elogios. É aquele olhar, gritei. Olhos de ressaca. Posso seguir melhor, agora, depois de ter guardado esse olhar em mim.

O curioso caso

Na carta para sua filha, do "Curioso Caso de Benjamin Button":

“For what it’s worth: it’s never too late or, in my case, too early to be whoever you want to be. There’s no time limit, stop whenever you want. You can change or stay the same, there are no rules to this thing. We can make the best or the worst of it. I hope you make the best of it. And I hope you see things that startle you. I hope you feel things you never felt before. I hope you meet people with a different point of view. I hope you live a life you’re proud of. If you find that you’re not, I hope you have the strength to start all over again.”

23 de jan. de 2009

idade

A idade sempre me revelou muito pouco. Esconder-se atrás dela nunca funcionou, vesti-la sempre foi desconfortável, renegá-la sempre machucava.
Ganhei nova idade, e como todas as outras, ainda não sei direito o que fazer com ela. Saber algo tem sempre o limite da sabedoria. Não saber permite tudo, atordoante. Ainda me pego apaixonado por essas coisas que não sei lidar. Envelhecer é uma loucura do tempo.

*

Pensei agora a idade como a identidade da saudade. O espaço de carregar quem somos pelo tempo. Quem sou é sempre uma orquestra confusa de saudades acumuladas.

7 de jan. de 2009

Antecipados

Meus dedos e meus olhos vieram primeiro. Tive notícia que meus olhos levaram anos até que o resto da cabeça realmente iniciasse funcionamento. Foram anos de plena loucura das sensações – olhar e não precisar pensar é uma espécie de dialeto íntimo com a luz. Ou, para os mais crédulos, com Deus. Os dedos demoraram muito mais tempo, pois algo nos braços impedia o envio para a cabeça. Eu já tinha plena consciência das coisas do mundo e ainda tinha os dedos desprovidos de razão. Lembro que sentava em cima dos meus pés para ficarem formigando e assim, conseguia que os dedos dos pés pudessem brincar com os das mãos. Sentir o mundo com os dedos sem precisar avisar a cabeça deu uma autonomia espantosa para eles. Mesmo hoje, com a cabeça interferindo, ainda percebo que essa autonomia foi preservada. A delicadeza com que meus dedos decidem o que vai pra cabeça e o que irá ficar na própria pele me surpreende.

Um homem branco chegou a me diagnosticar de doença. Meu avô sempre não gostou das mansões dos homens brancos. Dizia: hospital é um perigo, onde mais se morre gente nesse mundo. O homem branco apertou meus dedos. Pediu radiografias. Observou meus olhos pelas lentes de aparelhos e analisou cada pequena veia saltada na bola branca. O homem branco tinha certeza da minha doença, mas com um tom cauteloso de quem sabe das coisas, disse que prefere consultar novas opiniões e rever os exames para me assegurar o nome da doença. A notícia da doença quando não vem acompanhada do nome é uma desgraça sem tamanho: é como ver alguém amado sofrendo e não saber o nome do motivo.
Não posso mentir que quando pequeno cheguei a pensar também em doença. Não tanto para os meus dedos, mas principalmente para meus olhos. Quando criança, é uma loucura muito grande essa possibilidade de olhar sem precisar pensar. Era sempre um esforço sair dos meus olhos para fazer amigos do lado de fora. Lembro que me cansava mais sair do que jogar bola. Já chegava na quadra meio cansado, mas ao mesmo tempo com uma áurea encantada. Virei, não por acaso, afetivo dos gols.

Não vou retornar ao homem branco. Me permiti uma vez e ele não foi convincente. Eu nunca presenciei meu avô numa mansão de homens brancos. A gente não acredita em coincidências, e talvez por isso sempre calhava algum desajuste de agendas, tempos e frescuras modernas. Meu avô, como outros tantos no mundo, morreu em uma dessas mansões. Tive a notícia. Pouco tempo antes, quando lhe contei o segredo dos meus olhos e dedos, ele sorriu feliz. E disse assim: no meu caso, veio primeiro a boca e o nariz. O nariz eu já desconfiava, porque realmente ele antecipava Jequié inteira com aquele narigão.
Ele deu mais um sorriso. Pensou algo. Disse que juntando com um futuro de mim ainda poderíamos formar um homem inteiro feito dessas partes antecipadas.

A boca do meu avô tinha um hálito de álcool. E ele insistia em me dizer que esse era o cheiro das coisas que não precisavam de razão.