31 de dez. de 2009

Reconhecer

O último suspiro do ano aqui nesse blog começa com um reconhecimento. Há algumas horas atrás, numa madrugada baiana ali no Rio vermelho. Ela chegou, disse meu nome, falou do blog, das fotos que fizeram ela me reconhecer e se apresentou.
Era de Aracaju, falamos pouco. Eu dei um abraço, fiquei espantado. O constrangimento inicial foi brindado com o olhar e o aperto de mão. Depois percebi que ela estava acompanhada. E isso me deixou ainda mais feliz: ela veio falar comigo de coração aberto em sinal de reconhecimento ao que eu escrevo aqui, sem confundir os mundos. Voltei para casa pensando nesse espaço aqui, em todas as situações inusitadas, experiências únicas que tiveram o blog como interlocutor. Preciso retomar todas as coisas sagradas que a minha escrita representa, a metáfora de mim.

Esse foi um ano que esqueci de mim no banco de trás e acelerei na estrada das coisas sérias, do mundo do trabalho. A competência esqueceu da poesia. Mas o último dia do ano me trouxe o espírito da retomada, da reinvenção. O próximo ano completa cinco anos desse blog. Dez anos que sai de Salvador.

Eu quero voltar a mim sem pedir carona.

23 de nov. de 2009

A língua da vida

Há tantas possibilidades na cabeça, ou então, muitos redemoinhos e atalhos para se percorrer um mesmo caminho. Assim, ainda que com tormento e pensamentos machucados, vamos enganando.
Mas nesta vida existe um companheiro - que muito ignorante fala apenas seu próprio e fulgaz dialeto. Quando o corpo fala não há razão capaz nem sentimento possível. Apenas escute, da maneira que vier. O corpo grita delicadamente a língua da vida - sem traduções desmedidas nem interpretações vagantes.

Meu corpo falou.

17 de nov. de 2009

Queria te dizer


"Tudo passa. Na vida, tudo passa. Mas nem tudo que passa, a gente esquece."

Chico Pedrosa
Foto de Tiago Lima.

Dança e doença

O genial Ken Robinson, estudioso da educação e da criatividade conta uma história que não sai da minha cabeça. Uma conversa que teve com Gillian Lynne, autora de "Cats" e "O Fantasma da Ópera", entre outras.

"Como você se tornou uma dançarina? E ela respondeu que foi interessante, quando ela estava na escola, sem esperanças, a escola escreveu para seus pais dizendo 'Achamos que sua filha tem algum tipo de distúrbio de aprendizagem'. Ela era muito inquieta. Então a mandaram para um especialista. Ela foi com sua mãe, ela ficou sentada num canto, sentada sobre as mãos, por uns 20 minutos, enquanto o especialista conversava com sua mãe. No final, ele disse: 'Gillian, eu ouvi todas as coisas que sua mãe me contou, e agora eu preciso conversar a sós com ela. Espere aqui e já voltamos.' Enquanto ele saia, ele aproveitou e ligou o rádio. Eles saíram da sala, e ele pediu para a mãe apenas escutar e observá-la. Ela estava de pé se movendo com a música. Eles observaram por alguns minutos e o médico falou: 'sua filha não está doente, ela é uma dançarina. Leve-a para uma escola de dança.' E a mãe a levou. Gillian disse que não consegue descrever quão maravilhoso aquilo foi. 'Nós entramos naquela sala e estava cheia de pessoas como eu. Pessoas que não conseguiam ficar paradas. Pessoas que precisavam se mexer para pensar.'
Ela fez diversos cursos, se formou no Royal Ballet, tornou-se uma renomada profissional, fundou sua própria companhia de dança, foi responsável por alguns dos musicais mais importantes da história e é uma multimilionária.

Outra pessoa poderia ter lhe receitado alguns medicamentos e ter dito para ela se acalmar."

Descobri aqui.

15 de nov. de 2009

Meu jovem

"Nesses tempos, meu jovem, o mais díficil é fazer as pessoas se encontrarem, se abrirem, expressarem seus sentimentos, se permitirem." Achei bobo, não gosto desses pensamentos que começam diagnosticando o tempo presente. Não há ninguém com suficiente qualificação para tal radiograma, tão amplo, tão complexo. Ele não gostou de ser contrariado, mas ficou surpreso, acho que no fundo ele gostou do meu argumento. E concordou depois de alguns instantes. "Você é esperto, meu jovem. Então vou te dizer: desde os tempos das cavernas, essa história de se relacionar tem sido um tormento, uma profunda dificuldade, que nos move e nos derruba, faz a vida se encher de sentido e ao mesmo tempo é capaz de roubar qualquer sentido que você tenha encontrado. Eu sei disso, não precisa vir com esse olhar de jovem solitário." A solidão é subestimada, eu disse baixinho, quase querendo que ele não tivesse ouvido. Mas ouviu. Justifiquei dizendo que tinha acabado de assistir um filme com essa frase. Ele continuou. "O que estou tentando te contar é simples: tenha muito cuidado com essa parafernalha que diz conectar as pessoas. Existe uma parte essencial que jamais a tecnologia, esse teu celular, esse tal de "tuiti" - falou com um tom obviamente debochado de quem sabia a pronúncia correta - vai dar conta. É só isso que estou dizendo. Tome cuidado. A sua palavra tem que ter verdade e sentimento em qualquer lugar. Seja na sua boca ou numa tela de computador."

Faz tempo que não consigo mais escrever as coisas que sinto. Já culpei a falta de tempo, o stress do trabalho, algum desconforto aqui e ali. Mas a verdade é que não sei. Antes, não saber era motivo suficiente para escrever, expressar, rabiscar, fazer um filme do olhar que me insiste.

Aquele senhor não deveria ter mais do que sessenta anos. Ele levantou, apertou minha mão firme e ao mesmo tempo com a delicadeza de quem sabe das coisas. Acabei lembrando do meu avô. Fazia tempo que não tinha uma lembrança tão forte dele. O senhor se despediu dizendo:

- A cada dez vezes que você tiver com medo, com vontade de ficar dentro do seu apartamento, sem sair da cama, sem conseguir dormir incomodado com algo que você não se sente capaz de mudar...a cada dez, tome uma decisão, mude algo, saia do apartamento, fale o que você sente. É uma boa média. Se cuide, meu jovem.

1 de nov. de 2009

A mulher sem importância

A intuição faz sua sabedoria parecer apenas um charme. Ela entrou com aquele olhar que dificilmente consegue ser esquecido. Foi simpática da maneira mais inesperada e com as pessoas mais inusitadas. Escutou alguns minutos - ou segundos, instantes, horas, quando ela está no ambiente o tempo exala um outro suor - e mostrou como movimentos despretenciosos podem ser cruelmente mais efetivos do que qualquer glamour arrogante e ligeiramente feminino. Ela observou o tempo suficiente para fazer o elogio certo.

"Adoro esse seu jeito de contar histórias."

A mulher sem importância saiu para preencher o espaço vazio que acabara de inaugurar. Em mim.

27 de out. de 2009

Ruas saudosas

Então você começa a distinguir, para sobreviver. Não ter certeza pode construir um caminho inteiro. A certeza é só um bom referencial para construirmos nossas próprias ruas, tortas.

Sinto saudade de ter vontade de escrever aqui.

28 de set. de 2009

Alma encantadora

“Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes, a arte de flanar. Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir (…), é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina…”

João do Rio, A Alma encantadora das Ruas, 1905.

14 de set. de 2009

Medium

"O utilitarismo quase sempre ama a mediocridade intelectual. Falemos a verdade: a mediocridade funciona.
Ela gera lealdades, produz resultados em massa, convive bem com a estatística, evita grandes ideias. Enfim, caminha bem entre pessoas acuadas pela demanda de sobreviver"

Luiz Felipe Pondé, FSP 14/09/09, em artigo "Um relatório para Academia".

23 de ago. de 2009

“Em uma certa enciclopédia chinesa que se intitula Empório Celestial de Conhecimento Benevolente, está escrito, em suas remotas páginas, que os animais se dividem em:

a) pertencentes ao imperador

b) embalsamados

c) domesticados

d) leitões

e) sereias

f) fabulosos

g) cães em liberdade

h) incluídos na presente classificação

i) que se agitam como loucos

j) inumeráveis

k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo

l) et cetera

m) que acabam de quebrar a bilha

n) que de longe parecem moscas.”

J. L. Borges

25 de jul. de 2009

A invenção do fracasso

O fracasso foi inventado antes do sucesso na história da existência humana. Na desgraça de nos compreendermos, existe um pressuposto dado: nascemos tristes, chorosos, com um profundo sentimento de injustiça - nascer não é justo. Só instantes depois, no primeiro encontro externo com a mãe, conhecemos a possibilidade de um mundo afetivo. Saimos do fracasso da nossa condição para a constituição de uma ilusão, pois lá fora não vai ser viável perpetuar aquela sensação que o colo materno inaugurou. Demoramos uma vida inteira para construirmos um outro colo, uma outra possibilidade afetiva, que seja mais real.

As mulheres eliminam esse fracasso quando conseguem enfim a sua própria maternidade. A paternidade não absolve os homens. É preciso inventar um sucesso que não contradiga sua essencial condição de fracassado. Ou aprendemos a se alimentar do amor, que significa longos períodos famintos com pequenas ilhas de fartura que nos trazem, enfim, algum sentido nesse mares estranhos.

21 de jul. de 2009

O romântico

"O romântico não é propriamente um idiota nostálgico, o romântico é um sobrevivente, sente-se como uma espécie caçada, um mutante que já nasceu num habitat hostil. Às vezes, esse tipo de ser é mais perigoso do que você, que ri tranquilo, cercado pela crença boçal de que o mundo seja seu. Os melhores entre eles aprenderam a dissimular a lágrima, mudar de assunto, fazer uma piada inteligente, fechar a porta do quarto. Quem se sabe desde o inicio derrotado, detém uma forma de poder invisível que o torna perigoso, justamente porque não combate pela vitória, mas sim porque sua natureza é não ter futuro."

Luis Felipe Pondé

7 de jul. de 2009

Através de Benedetti

Minha mão direita é uma andorinha
Minha mão esquerda é um cipreste
Minha cabeça, de frente, é um senhor vivo
E, por trás, é um senhor morto.

Vicente Huidobro

4 de jul. de 2009

Bartolomeu Sozinho

"- Tens medo de fazer amor comigo?
- Tenho - respondeu ele.
- Por eu ser preta?
- Tu não és preta.
- Aqui, sou.
- Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
- Tens medo que eu esteja doente...
- Sei prevenir-me.
- É porquê, então?
- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti."


Mia Couto. Venenos de Deus, remédios do Diabo.

15 de jun. de 2009

Viagem

“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.”

Amyr Klink

9 de jun. de 2009

Próximo

De um lado, o amigo rude, dono das verdades cortantes. Se a sinceridade legitimasse nossas ações, aquele seria um sujeito completo. Mas não é o caso, e o mote "só falo a verdade" pode esconder uma crueldade que pede distância. Ou pelo menos que se estabeleça algum tipo de pacto no vínculo: até aqui, compartilhamos verdades. Daqui em diante, seguimos em mentiras separadas. Vidas separadas. Provavelmente bons conselhos saem daquela boca. Mas como é díficil ouvi-los quando o objetivo daqueles verbetes serve mais para sua auto-afirmação do que para se aproximar do outro.

E do outro lado o irmão que não sabe onde colocar as mãos. Não sabe onde colocar as palavras. Toda aquela ternura desmedida, que não sabe pegar o metrô e chegar ao outro. Perde-se pelo caminho. O amor é sempre uma cidade estrangeira, então ele se apega as pequenas vitórias, como chegar até a padaria da esquina e conseguir pedir um café. Chegar ao outro e dizer-lhe do seu afeto, do seu amor, seria praticamente como chegar em Nova York com aquele inglês da escolinha e na primeira noite estar ouvindo versos apaixonados de uma artista "experimental" no jardim botânico do Brooklyn. E apenas com olhares, deixá-la plena em sua volúpia. Não é um exagero. Aquele era um sujeito do bem, apesar de suas doses exageradas de bom mocismo e essa sina de querer carregar o peso do mundo nas costas. Muitas vezes conseguimos supor o quanto aquela pessoa provavelmente deve gostar da gente. Mas, nesse quesito afetivo, digo com a pior das propriedades possíveis, suposições não enchem barriga.

O primeiro diz: tem que meter a boca mesmo. Falar umas verdades.
O segundo retruca: não, cara, tem que ajudar, o que falta é alguém pra ajudar.

Esse que vos escreve diz: Mais "verdades" só vão causar mais repulsa. E ajudar? Você não é nenhuma madre teresa.

Ao invés disso: Aproxime-se.

6 de jun. de 2009

Há um ano atrás

Em 2008, primeiro projeto pela TV1, para o Dia dos Namorados: Radiola do Amor, da Brasil Telecom.

Ser e estar

Existem esses momentos em que precisamos enfrentar certos desafios de frente.
Mas quando estar sozinho passa a ser um desafio, confesso que fraquejo.
Sempre lidei bem com isso. Já vão quase dez anos de desacolhida, de vôo além-ninho.
O problema, veja bem: Não é ser sozinho. Disso, me construi. O problema é estar sozinho.

- Foi assim que ele me explicou. E partiu.

23 de mai. de 2009

Muito mais

Ela contou do meu olhar, disse que era provocante em alguns momentos, e aconhegante em outros. Eu estava naquele momento estranho, numa rotina contra a mediocridade dos dias. A repetição não é o problema em si. Andar é uma repetição de passos. A questão é: para onde esses passos estão te levando? Eu não soube lidar com seu charme.
A verdade é que minha vida poderia mudar completamente apenas com um punhado daquele encanto, com algumas noites compartilhadas daquela paixão que se anunciara. Mas para mudar a vida dela de alguma forma, eu precisaria doar muito mais. Muito mais dedicação, cuidado, muito mais de mim.

Nesse momento lembrei de uma frase que recebi num bar em Montreal. Nunca tive certeza se concordava. Traduzi aqui.

"Um homem pode se transformar com um acorde. A mulher precisa da melodia completa."

Eu me apaixono até com o silêncio.

6 de mai. de 2009

Porteiro

O porteiro me olhou com aquele ar tristonho, me lembrou o gato de botas do Shrek. E falou assim:
- Muito trabalho né seu Vitu? Nunca mais parou aqui pra gente prosear.

No olhar, algo se anunciava. Na fala, nas entrelinhas do sotaque, percebi que ele tinha flagrado. Ele sabia e estava com um certo ciúme.

Eu estava passando mais tempo conversando em outra portaria. A do lugar onde eu trabalho. Tomando cafés de madrugada com o porteiro-showman da TV1, o Manuel.

Respondi com a esperança de que novas disponibilidades surgirão. Era o possível naquele momento.

Todo homem precisa valorizar seus vínculos com essas figuras: os guardiões dos portais que adentramos no cotidiano. A sabedoria de quem entende das entradas e saídas dessa vida confusa.

29 de abr. de 2009

Sangue

- Olhei bem em seus olhos e compartilhei minha profunda crença naquelas palavras.

Coração? É só o ínicio. Mas definitivamente não é o órgão do amor. A cabeça, o cérebro? Só porque controla as terminações nervosas? Quando você dói de amor você tem dor de cabeça? Claro que não é na cabeça, apesar de todos os racionais terem argumentos para isso.
O órgão do amor é o sangue. Está em todo lugar. Exceto nas partes mortas, como cabelos e unhas. Quando é pleno, o corpo inteiro vibra, parece um carnaval gritando por dentro. Quando dói, possui essa preciosa habilidade de doer em todo lugar a ponto de você não saber onde dói. O amor não tem dor localizada. O coração é o órgão da paixão, talvez. O ínicio de tudo. O ínicio do amor. Bota pra fora: vai pro resto do corpo e quando voltar me diz se virou amor ou tudo já se acabou.
Por isso menino, nada como doar sangue após uma desgraça amorosa.

- Eu quase não consegui levantar para fazer o teste de sangue.

O segredo do goleiro

45 minutos. Segundo tempo.
O melhor é não pensar em quanto tempo de acréscimo teremos. Para quem está em campo, isso não importa mais. É preciso apenas um gol. O desespero é latente em todos os rostos. O problema do desespero é que ele não te leva a lugar nenhum. Dificilmente uma atitude tomada em pleno desespero vai te ajudar. Foi nesse momento que ele lembrou. Era o goleiro. O time inteiro dividido entre o pânico e o desespero. Escanteio. Lá do outro lado do campo. O goleiro respirou fundo, fechou os olhos, e quando abriu já estava na outra metade do campo. Acreditando que o goleiro estava sendo movido pelo mais completo desespero, metade do time encarou aquilo como uma confissão de falência, e a outra metade tentou tirar motivação daquela cena, mas estavam desesperados demais para qualquer movimento sadio. O goleiro sabia que era o único com condições de ressignificar o desespero e partir pra frente. E fez. Mas obviamente isso não era suficiente, não existem milagres e ao contrário do que ele ouvia no programa da Xuxa quando criança, não basta querer muito alguma coisa. Você precisa ter um plano pra conseguir. Uma estratégia. Inventar um jeito. Motivação sozinha é como desespero: não te move pra frente, só de um lado pro outro.
O goleiro olhou bem firme para seu companheiro que estava prestes a bater o escanteio. E fez um gesto com a mão como quem diz: "sou eu quem está aqui". Ninguém mais entenderia. Mas ele entendeu. Ajeitou novamente a bola. A estratégia do goleiro era simples mas era o melhor aliado que sua sorte poderia ter. Ele deu o primeiro passo dentro da área adversária pensando não como mais um jogador. Mais um atacante atônito e desesperado do seu time. Esses caras tiveram tempo suficiente para fazer um gol. E não conseguiram. Ele não podia agir como um atacante ordinário. Naquela área repleta de zagueiros suados e nervosos, ele precisava de algo inusitado. Ele precisava pensar como um goleiro. Nisso, ele tinha bastante experiência. O goleiro adversário olhou para ele de uma maneira estranha. Todos os zagueiros adversários pareciam zombar do goleiro querendo fazer o gol. Apenas o goleiro adversário teve aquele péssimo pressentimento, como se reconhecesse ali um profundo conhecedor de todas as suas fraquezas.

O escanteio foi batido. Não vou descrever o lance, porque sou um péssimo narrador esportivo.

O goleiro pensou e agiu como um goleiro. E fez o gol. Num lance rápido, o juiz não percebeu mas o gol teve uma leve ajuda da mão esquerda. Não sei se era de Deus, como naquele gol do Maradona. Mas o fato é que o gol foi validado. E não existe injustiça no futebol, apesar de todo o rebanho de lamentações. Existem paixões e um resultado.

O goleiro fez o que somente ele poderia ter feito. E fez a diferença.

27 de abr. de 2009

Viventes

Eliane Brum, terminei teu artigo sem saber se queria casar contigo ou ir pra casa e finalmente chorar leve.

"Por que sobrevivemos à grande queda ou às sequências de pequenos, mas dolorosos tombos? Porque não sobrevivemos. Percebo que não há como sobreviver, só o que podemos fazer é viver. Reinventar a vida incluindo nela o sangue, o barro e o limo do fundo do poço. Criar um sentido para o que aparentemente não tem nenhum. Não existem sobreviventes. O que existe são viventes."

24 de abr. de 2009

Olhos bonitos

Quando a conheci, nem sabia o que ela era, quem era, o que fazia. Apenas fiquei feliz por ela ter aqueles olhos bonitos e ela ter sentado ao meu lado, naquela mesa de bar com pessoas em comum. Eram olhos bonitos e estranhos. Quando ela começou a falar os olhos fizeram mais sentido. Agora, quando leio suas palavras fico imaginando seus olhos bonitos e cheios de sentido.

E hoje, ao ler algo que ela colocou no blog, me veio na minha memória um dia fundamental na minha vida. O dia do muro. Eu devia ter uns dez anos quando vi um muro com as seguintes frases grafitadas:

As pessoas não mudam. Adaptam-se.
As dores não passam. Mas vai melhorar.
Deus não existe. Mas acredite.
O amor é uma doença. Mas não se cure.

Lembro de ter tirado o caderno da mochila e anotado. A partir disto, todo o resto deixou de ser lembrança e passou a ser invenção. Ali eu me iniciei. Até então, eu tinha sido iniciado.

Leiam ela também. Cris Guerra. Ser mãe a tornou uma literatura sublime.

23 de abr. de 2009

Quiser

Existe um antigo provérbio africano que diz o seguinte:

se você quiser ir rápido, vá sozinho.
se você quiser ir longe, vá acompanhado.

21 de abr. de 2009

Lirinha no teatro

Uma cena sem filme

Eu queria que você sentasse aí porque eu tenho essa história pra te dizer. Não, eu sei, não é assim também. Eu costumo achar que as coisas sérias ou tristes a gente precisa escutar sentado. Tenho pra mim que a tristeza influencia na gravidade o que pode causar um certo atordoamento em quem está de pé. Bom, sentado ameniza alguma coisa. Talvez ouvir essas coisas deitado. É, eu sei. Melhor mesmo seria não ter que ouvir.

Eu sei que você me conhece, mas isso vai acabar atrapalhando as coisas. É impossível você fingir que não sabe quem eu sou, mas você pode tentar escapar desses pensamentos que tentam mapear antecipadamente o que estou dizendo, só porque você me conhece. Algo como "ih..agora vem a parte que ele faz um drama". Ou "já conheço esse tom de voz". Eu também costumava me conhecer e passei a me dar melhor comigo mesmo quando me permiti essas surpresas, me permiti não ficar antecipando ou bordando fatalismos nos meus atos.

É, eu sei. Então, era isso mesmo que eu queria te dizer. Não, não, foi até melhor você ter dito, ter tomado a iniciativa. Tá. Tudo bem. Eu sei. Quer dizer, sei porra nenhuma.

Eu que deveria ter sentado, né?

Someone once told me


19 de abr. de 2009

Porque sou autor.

"Um autor não é somente alguém que publica algo, tanto em forma de artigos, livros ou por meio digital. É, sobretudo, alguém que ocupa certo lugar, se autoriza a registrar suas palavras, esperando algum efeito no outro."

Num folheto de um forum lacaniano.

14 de abr. de 2009

Vôo de Minas

Fui para Minas e voltei bem, feliz. Em Minas o mundo parece mais sereno, as miúdezas possuem mais espaço para caminhar. Na Bahia, parece que fui pra África e mesmo sendo meu ninho, Salvador é sempre uma cidade que seduz, nunca acolhe. São Paulo é uma Nova York esculhambada, tentando concatenar seu desejo cultural de uma Paris que não existe mais - nem na própria Paris - aos seus impasses de mundo globalizado, mesmo desacreditada em sua própria ideologia. Mas acho que é por ser baiano, e morar em São Paulo, que me aproximo de Minas e do seu belo horizonte desse jeito.

Lá em Minas, eu voei. Chama-se paraglider ou para-pente. Fomos numa Serra, vi aqueles pássaros de gente com asas coloridas e não tive dúvida. O ímpeto é sempre passível de desconfiança. Mas pensei comigo que medo é um negócio que só tem serventia no chão. Pode lhe prevenir de certas coisas, o receio não deixa de ser uma sirene interna. Mas de que vale ter medo no céu?

Voar é sem palavras.

8 de abr. de 2009

Pandemônio

"A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório."

Chico, impossível. Leite derramado.

4 de abr. de 2009

encontro

Hoje encontrei uma pessoa que reconheceu meu nome e se mostrou leitor do blog. Ao longo desses anos e aventuras, sei que tem pessoas por aí lendo isso aqui. Mas é sempre estranho esse contato cara-a-cara e nunca me habituo. Do encontro, me marcou o final. Essa pessoa estava brincando com o título do blog. Perguntou por quê eu queria sair de mim, ainda mais a pé.

Eu respondi que não era uma questão de querer. O título desse blog anuncia um pouco do que aqui se apresenta. Não é possível chegar a nenhum lugar se você não partir de si mesmo, ter-se por ínicio, colocar-se no que faz, no que pensa, no que cria, no que inventa. Isenção é um crime sorrateiro, mas que continua recebendo pena de morte na auto-estima da verdade. Enquanto a falácia alia isenção a verdade, eu alio paixão a verdade. Somente as palavras apaixonadas podem emanar alguma verdade. Não consigo ir embora de mim a pé é minha manchete passional.

29 de mar. de 2009

Beleza convulsiva

Crítica do filme "Sobreviventes" por Zanin no Estadão.

"O que interessa mesmo é quando as pessoas contam suas histórias, e a câmera se fixa ora em seus rostos, ora em suas mãos. Às vezes há um descompasso entre imagem e som. Ouve-se a fala, mas a boca não se mexe. São imagens profundas, belas, nunca bonitinhas. Procuram-se nos rostos os traços daquela beleza que Baudelaire chamava de convulsiva. Rostos de gente que viu a morte de perto."

28 de mar. de 2009

Sobreviventes


Crítica do documentário "Sobreviventes", do qual fui diretor assistente e realizei a montagem.

"(...) “Sobreviver”, define o dicionário, é “continuar a viver, a ser, a existir, depois de outras pessoas ou de outras coisas”. Desta definição, o trabalho de Chnaiderman e Pinheiro se concentra, na condução das entrevistas e na edição, em dois termos-chave: “continuar” e “depois”.

A sucessão de histórias nos permite compreender que duas forças estão em jogo nas situações de sobrevivência, que para continuar a existir é preciso insistir depois de algo que bloqueia ou lança a vida na contramão.

Os testemunhos, no entanto, não se reduzem a ilustrações de casos limítrofes, nem o documentário se aventura no campo das experiências de quem quase morreu e trouxe desse “por um triz” algum tipo de mensagem. O que vemos são os que fingiram de mortos para continuar a viver, os que foram dados como mortos, mas que de fato não haviam morrido, os condenados a morrer precocemente e que, porém, continuam aí compartilhando vida. E há também os que perderam tudo _casa, filhos, liberdade, o direito de circular e de existir, como os prisioneiros torturados por nossas ditaduras."


Cássio Starling Carlos, blog da ilustrada - Folha.

27 de mar. de 2009

Precisamos fazer algo com essa pensata

"Buceta é um negócio desorganizado, bagunçado. Requer uma outra abordagem, não dá pra entrar querendo encontrar algo, querendo impor uma ordem.

Você não pode ser pragmático nem metódico diante de uma buceta.
Homens em geral são muito caretas diante de uma."

Coisas que você ouve quando a amizade conquista intimidade.

23 de mar. de 2009

Projeto permanente

"Infinito foi esse minutinho que passou agora, e essas coisas não ficaram registradas porque são de foro íntimo, embora os telhados testemunhem gritos pelados toda hora. Gritos pelados é uma expressão do espanhol, veja bem, não será coincidência que o amor traga de volta pedaços reciclados para quererte, abollarte y comerte a besos…"

Da Heloisa. Mais aqui.

Encontrei a sinopse do projeto que estou trabalhando. Não acho feio encontrar fora o que me movimenta criar por dentro. Acho sincero reconhecer-se nos desatinos alheios. Não é pois, sobre isso que vou falar?
Do sentimento que se desfez. Não necessariamente do outro, que foi, que partiu. Mas o outro como um movimento que passou, um vento que mudou as coisas de lugar. Quero conversar como ficou a vida com aquela poltrona mais para a esquerda.

16 de mar. de 2009

bebe

Amar não é ter certeza. É embriagar o talvez.

Adelmenito

Adelmenito sabe quando não sabe das coisas. E se você permitir pensar bem sobre, vai ver formosura nisso. Cresceu assim, de menino que vai ser para jovem olha como tá sendo. O futuro ainda não tinha alinhado, porque o futuro que a gente espera não dá carona. Futuro não é trêm que se espere, dizia o povo de Jabaquara. Antes as coisas sabidas do povo de Jabaquara ou Amargosa eram sempre dadas de abobinhagem. Até que Adelmenito chegou na cidade trazendo de inteligência as prosas das outras cidades. Não que ele tivesse nascido por aí, mas ele era bom de ouvir. Quem sabe quando não sabe costuma ser bom ouvidor. Era assim, aprumando as pensatas nos bolsos, que ele chegou na hospedagem de quem é de faculdade. Esse povo da faculdade é sempre vindo de outros cantos. Até acharam bom quando subiu a tijolada, mas hoje já ouve-se o lamurinho de pé-de-praça: pra quê se as sabedorias não ficam na cidade? Vem de fora, fica um tempinho, e vai-se embora assim que pega o papelete. Numa dessas lamurinhêras, um tonto deu grandeza para uma tolice contra a faculdade. Foi um rebuliço. O tonto colocou sangue nos olhos daquele povo, arrepiado das entranhas, fizeram chame-chame, sanguizêra, bacurinhação e pedregulhada. Pela desgraça dos azares, a falta de sorte tropeçou Adelmenito, justo o do não-saber. Se eu tivesse só dois olhos, falaria o que tinha acontecido. Mas como vem outras coisas no corpo da gente, bagunçando o coreto das sensações, não sei para onde foi. Tinha aquele cheiro de dor com sangue esmagado. Aquela dor que não é justa, que não tem pertencimento, que nasce sempre de alguma desgraça órfã, pedindo esmola nas ladeiras do peito. Tinha tudo pra ser, falou um remelento arrependido. Fazer uma multidão endoidar demora pouco - vai tudo de uma só vez. Agora desendoidar apega-se mais tempo: vai assim, um em um, na preguiça da razão.

Esse negócio me agonia até hoje, mas de tanto, que eu chego até achar o nome de Adelmenito bonito. Com a cabeça eu sei que é uma tristeza de nome. Mas trás uma danada de uma memória bonita que não tem como batizar outra beleza. Já nos finalmente, respirando com a dificuldade que presentearam, cheguei junto só pra conseguir um suspiro dele pra guardar comigo. Nem sabia o que dizer. Ele percebeu e se reconheceu de mim, achando formosura meu não saber. Tem coisa que nasce pra gente não saber, lembro dele dizendo. Depois de umas olhadas perdidas, uma coisa de dizer encontrou minha boca, quase nem passou pela cabeça. Não sei porquê mas perguntei se ele estava com raiva. Com raiva daquele povo. Do tonto. Da cidade. Da maluquice quando ganha muita gente. Nunca vi Adelmenito de raiva. Queria saber dele agora.

A dificuldade de respirar subiu pra fala, mas ainda assim ele me disse assim. Até poderia sentir raiva. Mas se é pra ser o último gosto que carrego, quero não. Prefiro lembrar de outras coisas pra botar na mala dos sentimentos.

Adelmenito vai continuar sendo, mesmo depois de morto. Mais uma coisa que ele não vai saber.

8 de mar. de 2009

Nova mente

Sua tentativa de antecipar desgraças acaba trazendo a pior delas.
A que impede de acontecer o que há de vivo em meio a toda desgraça.
Antecipar é sempre um aborto. Por mais que seu olhar resignado diga: não teria chances de sobreviver.

Talvez se eu tivesse tido uma criação mais católica seria mais fácil.

Ainda bem que não é fácil, pois.

Rascunho para cena

"Fazer a diferença".

Ele ouviu denovo mas dessa vez reagiu. Você sempre vai achar a vida sem sentido. Não importa se você vai se filiar ao greenpeace ou partir numa campanha contra a prostituição infantil no nordeste. Não adianta entrar para os doutores da alegria. Sua vida vai estar sempre assim. Cheia de vazio. Porque enquanto você envolve seus tantos anos nesse atordoante movimento de "fazer a diferença" de maneira grandiosa, do seu lado, continua sem nenhuma diferença, o mesmo, as mesmas pessoas obtendo as mesmas reações de você. Obviamente, assim como um herói revolucionário, você pode me dizer que as grandes causas tem grandes preços. Algo retumbante sobre a humanidade ter mais importância do que sua mediocridade cotidiana, mesmo que isso inclua até um filho. Um filho que é menos importante do que o mundo. Do que a mudança climática global, que os trabalhadores infantis, enfim. Eu não vim aqui para te condenar, e sinceramente nem acho que você seja culpado de nada. Já faz algum tempo que me afastei desse jeito simplista de ver a vida. Eu vim aqui porque por alguma razão inexplicável eu gosto de você. Eu vim aqui porque em algum lapso da sua peregrinação, você foi importante pra mim, falou coisas que mudaram minha vida num momento crucial, porque você me ouviu. Você fez a diferença pra mim, num desses lapsos. Fico me perguntando se ao invés de tentar mudar o mundo, você empenhasse mais energia a mediocridade. Mais energia ao teu filho. Começar a humanidade pelas pessoas que te amam.

2 de mar. de 2009

Porteiro

Mais uma. O jovem homem pequeno não esperava mais por aquele olhar do porteiro, fazia tempo o receio de qualquer brincadeirinha machista tinha dado lugar a uma estranha cumplicidade. Naqueles ultimos meses abarrotados de um calor que desejava a cidade, muitas histórias passaram por aquela portaria, acompanhando o jovem homem pequeno. As vezes recebia no inusitado da noite, e o interfone tocava para avisar. Ali mais uma oportunidade para qualquer deboche. Mais uma, hein? Não. Aliás, mais cúmplice do que sua voz no interfone, era o olhar do porteiro quando calhava do jovem homem pequeno subir de mãos dadas, sempre desengonçado, sempre tentando esconder de si seu desconforto com aquela situação. Definitivamente não se tratava de nenhum cafajeste ou coisa que o valha. Mas era fato que os meses quentes trouxeram esses desejos transitórios e de cpfs variados. O porteiro talvez tenha sido o primeiro a perceber a situação que estava a se desenrrolar. Ele ausentou-se do cômodo lugar de porteiro - que de todos sabe um pouco - e passou a habitar um privilegiado local de compaixão, algo de um exercício profundamente inovador na sua trajetória de nordestino migrante. E não há de esperar qualquer tipo de confraria de "vindos do norte", pois se fosse gaúcho, possivelmente o mesmo aconteceria na relação com aquele jovem homem pequeno. Era baiano, sim, o pequeno homem. E seu sotaque molenga poderia até ser compreendido como elemento do seu qualquer sucesso provisório com aquelas histórias cheias de cabelos longos. Mas o porteiro percebeu então que ali se tratava de um homem atormentado, de um desespero que não condizia com sua pequenez. O desespero de quem tropeça ao carregar o próprio corpo - triste passava pela portaria sabendo que aquela história, ainda que tivesse abdicado do sapato de salto alto, não iria sobreviver a três ou quatro subidas e descidas de elevador. Certa feita, com a desculpa da falta de luz, até subiu de escada, e é provado uma certa esperança que lhe acometeu: uma espécie de saúde, um exercício físico que pudesse fortalecer a possibilidade daquele amor. Bobagem.
Quando chega desacompanhado, o porteiro olha e compartilha um leve suspiro. Um homem quando reconhece-se na dor do outro, parece doer um pouco menos.

Talvez seja isso. Mais uma. Pensou por dentro. O jovem homem pequeno passou a ser seu próprio porteiro, dando vazão ao deboche como a mais cruel auto-crítica. Nessa portaria de tormento e desilusão, dificilmente passa-se ileso. O elevador nunca perdoa. Menos uma.

22 de fev. de 2009

Doença particular

Há muitos anos, todas as noites, antes de dormir completamente, eu sempre penso na minha vida alguns anos depois. Imagino caminhos, invento pessoas novas ou amadureço histórias existentes, traço feitos, realizações, vivencio situações das mais bobas até as mais grandiosas.

As vezes esses momentos imaginativos são tão vivos e prazerosos que acabo optando por estender o momento na cama para poder imaginar mais e mais. Quando isso acontece e passo mais tempo na cama do que em pé, é a minha sirene interna alertando algo. Depressão, talvez. Apesar do grande prazer que dá imaginar possíveis futuros para minha vida. Acho que é minha doença particular. Hoje acordei vencendo isso, com motivação para sair da cama, para ler, para escrever coisas, para re-encontrar pessoas, fazer acontecer. E admitir essa doença particular significa também um movimento de acolher isso e trazer para a consciência o perigo dessa imaginação sem vida além da minha cabeça, além da minha cama.

A imaginação tornou-se meu vírus incurável. Uma espécie de diabetes, algo que demanda eterno controle. Doce desespero de existir.

11 de fev. de 2009

8 de fev. de 2009

Carnudo

Sentei ao seu lado pela semelhança. Ele assemelhava-se e não sei direito com quem. Existem pessoas que simplesmente lhe trazem uma aproximação, lhe lembram alguém, não se sabe nomes. Ele tinha semelhança por algo que me despertou algum afeto. E bastante confiança. Pois sentei.
Quando ele arqueou a sobrancelha eu já sabia que falaria pouco mas seria uma fala importante. As pessoas que sabem usar bem a sobrancelha, em geral, falam menos, mas falam bem. Acho que economizam na expressão do olhar algum sentido, e as palavras enriquecem-se na potência da boca. Esperei um pouco. Tive paciência, e isso me deixou feliz.

Ele contou que domingo para ele era como reveillon. Incerto, a semana era seu próximo ano. Domingo findava uma jornada, o sol nascendo na segunda lhe comovia. Ficou quieto um tempo e então lhe perguntei se isso era um jeito que ele encontrou para achar que vivia mais. Ele balançou a cabeça. Na verdade, era só um jeito de dar mais valor ao pouco tempo que lhe restava. Ele não conseguia viver direito sem ter essa esperança com relação ao tempo. Esse sentimento tão comum aos finais de ano, como se houvesse uma segunda chance ou uma nova possibilidade de fazer coisas.

Acreditar é um verbo carnudo, finalizou. Ele sorriu com poucos dentes, mas nada me tira a sensação de que aquele verbo combinava muito bem com aquela boca.

25 de jan. de 2009

Olhos de Ressaca



Luis Fernando Carvalho tem o incrível dom de me despertar grandes paixões na tela. Aos 19 anos, quando assisti Lavoura Arcaica, não entendia como eu tinha conseguido ser homem até então sem conhecer Simone Spoladore. Aquela figura dançando na tela enorme, numa Montreal distante, no lançamento do filme. Ali me entendi plenamente desejoso pelo meu sexo oposto.

Outras aventuranças vieram. A última, em Capitu jovem na Globo, a vocalista de uma banda chamada Manacá, explodiu meu coração. Aquele rastro de cabelo, as peripécias desse personagem tão deslumbrante da potência do feminino.

É tão leviano declarar essas coisas, descrever esses sentidos, traçar qualquer rota de elogios. É aquele olhar, gritei. Olhos de ressaca. Posso seguir melhor, agora, depois de ter guardado esse olhar em mim.

O curioso caso

Na carta para sua filha, do "Curioso Caso de Benjamin Button":

“For what it’s worth: it’s never too late or, in my case, too early to be whoever you want to be. There’s no time limit, stop whenever you want. You can change or stay the same, there are no rules to this thing. We can make the best or the worst of it. I hope you make the best of it. And I hope you see things that startle you. I hope you feel things you never felt before. I hope you meet people with a different point of view. I hope you live a life you’re proud of. If you find that you’re not, I hope you have the strength to start all over again.”

23 de jan. de 2009

idade

A idade sempre me revelou muito pouco. Esconder-se atrás dela nunca funcionou, vesti-la sempre foi desconfortável, renegá-la sempre machucava.
Ganhei nova idade, e como todas as outras, ainda não sei direito o que fazer com ela. Saber algo tem sempre o limite da sabedoria. Não saber permite tudo, atordoante. Ainda me pego apaixonado por essas coisas que não sei lidar. Envelhecer é uma loucura do tempo.

*

Pensei agora a idade como a identidade da saudade. O espaço de carregar quem somos pelo tempo. Quem sou é sempre uma orquestra confusa de saudades acumuladas.

7 de jan. de 2009

Antecipados

Meus dedos e meus olhos vieram primeiro. Tive notícia que meus olhos levaram anos até que o resto da cabeça realmente iniciasse funcionamento. Foram anos de plena loucura das sensações – olhar e não precisar pensar é uma espécie de dialeto íntimo com a luz. Ou, para os mais crédulos, com Deus. Os dedos demoraram muito mais tempo, pois algo nos braços impedia o envio para a cabeça. Eu já tinha plena consciência das coisas do mundo e ainda tinha os dedos desprovidos de razão. Lembro que sentava em cima dos meus pés para ficarem formigando e assim, conseguia que os dedos dos pés pudessem brincar com os das mãos. Sentir o mundo com os dedos sem precisar avisar a cabeça deu uma autonomia espantosa para eles. Mesmo hoje, com a cabeça interferindo, ainda percebo que essa autonomia foi preservada. A delicadeza com que meus dedos decidem o que vai pra cabeça e o que irá ficar na própria pele me surpreende.

Um homem branco chegou a me diagnosticar de doença. Meu avô sempre não gostou das mansões dos homens brancos. Dizia: hospital é um perigo, onde mais se morre gente nesse mundo. O homem branco apertou meus dedos. Pediu radiografias. Observou meus olhos pelas lentes de aparelhos e analisou cada pequena veia saltada na bola branca. O homem branco tinha certeza da minha doença, mas com um tom cauteloso de quem sabe das coisas, disse que prefere consultar novas opiniões e rever os exames para me assegurar o nome da doença. A notícia da doença quando não vem acompanhada do nome é uma desgraça sem tamanho: é como ver alguém amado sofrendo e não saber o nome do motivo.
Não posso mentir que quando pequeno cheguei a pensar também em doença. Não tanto para os meus dedos, mas principalmente para meus olhos. Quando criança, é uma loucura muito grande essa possibilidade de olhar sem precisar pensar. Era sempre um esforço sair dos meus olhos para fazer amigos do lado de fora. Lembro que me cansava mais sair do que jogar bola. Já chegava na quadra meio cansado, mas ao mesmo tempo com uma áurea encantada. Virei, não por acaso, afetivo dos gols.

Não vou retornar ao homem branco. Me permiti uma vez e ele não foi convincente. Eu nunca presenciei meu avô numa mansão de homens brancos. A gente não acredita em coincidências, e talvez por isso sempre calhava algum desajuste de agendas, tempos e frescuras modernas. Meu avô, como outros tantos no mundo, morreu em uma dessas mansões. Tive a notícia. Pouco tempo antes, quando lhe contei o segredo dos meus olhos e dedos, ele sorriu feliz. E disse assim: no meu caso, veio primeiro a boca e o nariz. O nariz eu já desconfiava, porque realmente ele antecipava Jequié inteira com aquele narigão.
Ele deu mais um sorriso. Pensou algo. Disse que juntando com um futuro de mim ainda poderíamos formar um homem inteiro feito dessas partes antecipadas.

A boca do meu avô tinha um hálito de álcool. E ele insistia em me dizer que esse era o cheiro das coisas que não precisavam de razão.