16 de dez. de 2008

Aperto no peito

É importante dar nome a esse aperto no peito. Foi assim que me tornei homem. Nomeando apertos. E só depois de homem, que entendo o aperto de menino. Só depois de tantos depois, dou nome ao que antes de tudo, antes de mim. Hoje escutei esse aperto e preferi deixá-lo sem nome. Pensei que não gostaria de chamá-lo de nada. Esse aperto não é novo nem velho, não tem frequência nem destino. Dele, sei apenas que não é preciso chamá-lo. Ele vem. Sem nome, ele acaba tirando também um pouco da minha própria identidade. Não por maldade. É que o meu nome também acaba ganhando desimportância. Há o aperto e isso deveria bastar. Nem escrever sobre ele é necessário. O aperto vem fundo, porém leve. Ele apenas aperta. Parece que somente quem não precisa se esconder em um nome consegue trazer tanta força e leveza.

É quase uma dor sem corpo. Tem a delicadeza para apertar além.

13 de dez. de 2008

Meu silêncio

Silenciar é abdicar da palavra por um instante para permitir todo o resto no momento seguinte.

15 de nov. de 2008

Mil vezes

“Recomeçar...Recomeçar... Recomeçar... Mil vezes recomeçar. Recomeçar de novo, recomeçar sempre... Mil vezes recomeçar.”

No filme São Paulo S/A.

1 de nov. de 2008

Certeza pra dentro

Eu gosto desse lugar que retorno sempre que a dose de incerteza ultrapassa o limite. Não existe limite para incerteza, eu sei. Posso beber uma garrafa cheia dessa incerteza destilada. Ainda assim, o pequeno espaço que deixo reservado a lucidez, não no sentido cafona, mas no sentido embrionário - luz - onde a consciência é tão poderosa que com um pouquinho dela conseguimos ter noção de todo o mar de incerteza que estamos embriagados.

Quando essa pequena luz falta, é nesse lugar que retorno. O movimento de chegar até aqui é doloroso, não deixa nada passar em vão, a incerteza questiona meu sapato, minhas compras, minhas escolhas, meu rosto, vasculha minha memória e não deixa nada intacto. Mas quando chego nesse lugar, deixo de sentir raiva de mim, ou melhor, raiva da incerteza. Sento numa poltrona vermelha, que é a mesma desde os tempos da escola, quando eu vinha aqui inseguro por ainda não saber amarrar o cadarço do sapato. Quando sento nessa poltrona vermelha, é como se a luz, uma lucidez mágica me permitisse compreender inclusive minhas incertezas. Observo sua voracidade em questionar tudo com um semblante quase ancião. Talvez eu estivesse em outro lugar, fazendo outras coisas, não fossem minhas incertezas, não fosse esse lugar que venho de tempos em tempos, quando ela me embriaga. Isso é claro pra mim: retornar a essa poltrona vermelha não deixa de ser um retrocesso, alguns passos pra trás que dou. Ninguém é plenamente corajoso. Mas sei que se eu parasse menos para indagar minha própria ousadia, eu estaria adiante. Só que não me interessa mais estar adiante. Porque não serei eu. A incerteza é minha parceira mais fiel. E nesse vendaval de conflitos, rivalidade e competição, a poltrona vermelha é iluminada: não há qualquer comparação. Ninguém é melhor do que eu, na poltrona. Simplesmente porque essa lógica perde o sentido. A poltrona nunca me trouxe qualquer resposta. Mas me dá de volta a convicção necessária para continuar no movimento, na busca.

Incerteza é a certeza interior.


21 de out. de 2008

Nossas conversas

- Quero tocar pessoas. Quero beijá-las. De todas as formas possíveis. Seja com minha boca, seja com minhas imagens. E toda sorte de beijo. Do que afaga, ao que morde nos intervalos da língua.
- eu tb quero isso! e isso tem um preço. vc está disposto?
- mais do que disposição, tenho tesão. sem tesão, não sei permanecer.

[...]

Ainda farei um filme de nossa prosa, Faria.

9 de out. de 2008

Trecho de algum filme de mim

Você nunca conseguiu dizer adeus, não é? Sempre preferiu esse 'até logo' pro infinito. Nunca mais é um logo mais que desistiu de esperar.

Quase sentido

A beleza do sexo sem sentido não está na volúpia do instinto, nessa vazão ao que somos bichos. E sim, na permissão que nos damos a ignorância incompleta, já que nem como meros bichos regidos por instintos estamos completos. Permitir-se incompleto, permitir-se essa ignorância, do ato, do suor, da força do tesão e ponto. Esquecer-se do sentido.
Talvez por isso o dia posterior seja definitivamente um entrave na nossa trajetória de bichos. Porque o sexo sem sentido exige renúncia total: tanto das emoções demasiadas quanto das razões equilibradas. Sem sentimentos, sem reflexões.

Eu sei que o sexo é sempre algo sem muito sentido. Está em sua essência. É a incompreensão do corpo, uma dança que está sempre buscando novos ritmos, cansa fácil das coreografias certinhas ou dos passos engessados da dança de salão. Mas mesmo perdido, ele caminha conosco até certo ponto. Até a virada da esquina da alma. Ali, existe um vento frio que serve de porteiro dos sentimentos. Movimenta o corpo por dentro e por fora. Quando há qualquer coisa sem nome, sem face, sem idade, qualquer coisa que simplesmente transcende. E o dia posterior faz todo sentido do mundo. E a gente acontece. E a partir daí, qualquer sentido torna-se irrelevante. Sentir já demanda todo o corpo.
Por isso, mesmo reconhecendo toda a beleza que pode existir no sexo sem sentido, confesso esse desconforto. Com esse vento frio me barrando na esquina. Sem sentimento, o dia posterior me torna ainda mais só.

A solidão é uma desgraça na alma. Mas é uma desgraça honesta. Nesses tempos, impossível não reconhecer o valor dessa virtude.

Nas noites sem sentido, não existe honestidade. É preciso muita sinceridade para ser desonesto consigo mesmo.

20 de set. de 2008

Acontecer

Há 6 anos eu não possuo uma tv em casa. E isso só tem melhorado minha relação com essa entidade enigmática da cultura brasileira.

Na TV Record, o programa Hoje em Dia resolveu fazer uma matéria sobre o Sebastião Nicomedes - o Tião, que entre outras coisas foi o tema do documentário que realizei na conclusão da graduação. Em outros tempos, talvez eu me recusasse a participar dessa pequena alegoria, com esse sempre excessivo olhar crítico. Mas nesse caso não teria o menor cabimento. Depois de conhecer Tião, e meses depois, concluir a faculdade, comecei a entender com menos rebeldia e mais astúcia esses elementos do nosso carnaval midiático. Talvez não existisse personagem real mais pertinente para um pretenso sujeito da comunicação falar. A reportér errou meu nome - disse Vitor Freitas - mas depois fui salvo pelo nome escrito corretamente na tela.

Assista aqui.

15 de set. de 2008

Ela vai saber.

Ela diz ter medo de se apaixonar. Eu tenho medo de não conseguir mais me apaixonar. O medo dela fala uma língua embolada. O meu silencia com um olhar-pro-infinito. O medo dela é um charme; o meu, uma indelicadeza. O medo dela anuncia um pulo em cada sorriso; o meu, vai embora sem dizer adeus. O medo dela não gosta muito que o chamem de medo; o meu, detesta apelidos.

O medo dela me beijou na boca. Meu medo, por puro ciúme, começou a falar de coragem.

1 de set. de 2008

Trapézio

"Era uma vez, mas eu me lembro como se fosse agora. Eu queria ser trapezista, minha paixão era o trapézio. Me atirava do alto na certeza que alguém segurava-me as mãos não me deixando cair. Era lindo mas eu morria de medo, tinha medo de tudo quase: cinema, parque de diversão, de circo, ciganos, aquela gente encantada que chegava e seguia. Era disso que eu tinha medo. Do que não ficava pra sempre."

Antônio Bivar, por Maria Bethânia no disco Drama 3°Ato, 1973.

Escute na voz dela.

31 de ago. de 2008

Seguro

É que minha verdade, junto a sua, não sabe o que fazer.
Ou mentimos, ou nos afastamos.
Ainda que se afastar seja só uma outra maneira de mentir.

28 de ago. de 2008

pra gaveta

Cada um carrega uma identidade da dor. Não como um RG, com números e uma foto sempre desatualizada. E sim um terreno abstrato que reflete suas experiências nesse universo de sofrer. Por isso algumas coisas nos marcam e nos emocionam mais que outras. É como se sua dor se identificasse com outra, e elas se cumprimentassem. Por isso o choro é sempre algo que não nos pertence, não há um controle do corpo sobre. O choro pertence a essa nossa outra identidade.
É isso que sinto as vezes, mais do que uma falta de controle, mas é como se a dor não me pertencesse. E sim o contrário. Por isso quando recorro a memória e vou nessa sensibilidade ignorante e tardia refazendo caminhos equivocados. Despedidas mal feitas. Aquela frase que poderia ter sido mais branda. Uma sisudez desnecessária para sua mãe que você pouco vê no ano. Uma jogatina de palavras vãs em discussões pueris com aquele amor. Aquela história que poderia ter dado mais passos adiante se a firmeza dos meus pés não fosse tão agressiva em momentos que bastava dar um pulinho, como esses que a gente dá na poça em dias de garoa simbólica. Alguma dureza em lidar com o pai quase que o punindo por sermos tão parecidos em pontos que não me agrada. Uma precipitação. Isso não é um vendaval qualquer de pequenas desgraças. Isso é o que compõe essa minha identidade da dor. Aquele último abraço que não consegui dar no meu avô. Não se reconhecer em sua própria dor é ser anônimo de si.



17 de ago. de 2008

mi

Ás vezes eu esquecia que ele ainda estava vivo para me enganar com uma morte que jamais chegaria. Mas chegou e não há mais engano possível.

Caymmi é o que a música brasileira pode ser.

Saravá, nossa saudade.

7 de ago. de 2008

li imitar

Não existe uma linha vísivel. Uma faixa com letreiros avermelhados: não ultrapasse, aqui é o seu limite. Sempre acabo associando o limite a uma situação adversa, um comportamento, uma ação, um certo contexto. Bobagem. Penso seriamente que só estamos vivos por causa dos limites, porque somos seres completamente precários e limitados forjando realidades a todo instante. Está aqui dentro, de mim, de cada um, esse volume asbtrato de superação. Alguns o conhecem em alguns instantes. Outros, carregam uma vida inteira nesse limiar. Nós só conseguimos realmente saber quem somos no limite. Que na verdade, tem muito menos a ver com algo externo e sim com a reação, a maneira que iremos lidar com essa situação. Um fato. Uma ação. Uma dor. Uma vida. Uma morte. Um amor. A paixão talvez seja o limite cuja superação mais pulsa nas artérias. Paixão e limite, pra mim, são quase irmãos gêmeos. E o limite de existir não é morrer.

Quando aquele corredor cambaleando vai se arrastando até o fim da prova, não é o espírito olímpico que importa. Até porque espírito olímpico é uma bobagenzinha politicamente correta. Essa cena toca profundamente porque materializa esse desafio: é como se cada passo fosse mais um cima da superação de si mesmo. E mais um. E outro. Existe uma beleza arrebatadora nisso. Não é um teste de capacidade. É um flagrante de vida.


"Eu vejo a beleza no mundo através de homens que chegaram ao limite."
Naomi Kawase



6 de ago. de 2008

anotei e botei na jaqueta da alma

Ser diferente é óbvio. Já somos todos, mesmo com todo o excesso de repetições e reproduções. Querer ser diferente é medíocre. Porque o que move esse desejo é a eterna comparação.

É sempre esse desafio: não ser diferente. Mas ser único. Não exclusivo, sem essa falácia de ser especial. E sim autêntico.

27 de jul. de 2008

Direito de sambar

Batatinha não foi simplesmente um dos maiores poetas do samba. Sua autenticidade fez com que a tristeza viesse dançar junto com os demais, na roda de samba. Ali na Bahia, meus caros, numa outra Bahia.

É proibido sonhar
Então me deixe o direito de sambar
É proibido sonhar
Então me deixe o direito de sambar

O destino não quer mais nada comigo
É meu nobre inimigo
E castiga de mansinho
Para ele não dou bola
Se não saio na escola,
Sambo ao lado sozinho

É proibído sonhar
Então me deixe o direito de sambar
É proibído sonhar
Então me deixe o direito de sambar

Já faz dois anos que eu não saio na escola
A saudade me devora
Quando vejo a turma passar
E eu mascarado, sambando na avenida
Imitando uma vida que só eu posso enfrentar

Tudo é carnaval
Pra quem vive bem
Pra quem vive mal

24 de jul. de 2008

Batman, casais, coringa e cinema

Esse texto começa sem palavras. Existe uma cena. Cinema lotado, quarta-feira, filme do momento. Aquele velho impasse da falta de cadeiras para casais sentarem juntos. Eu mudei de lugar, abrindo precedente para a efetivação amorosa de um casal de meia-idade. Não quis ser generoso. Estava apenas me incomodando profundamente o desamparo da mulher. A história iria parar aqui. Essa é a cena, sem palavras. Não trocamos palavras. Ele me agradeceu com um tapa nas costas. Ela me agradeceu com os olhos - que trocaram o desamparo pelo encantamento.
Eu não ia escrever isso aqui.
Mas ai começou o filme. Fiquei com vontade de falar qualquer coisa sobre o filme. E achei que seria importante falar desse ínicio. Não vou fazer crítica cinematográfica ou tecer algum comentário do universo HQ. Também não quero avaliar a atuação do Coringa. A morte só faz voar quem em vida tomou o impulso.

Gosto dessas coisas humanas que costumamos afastar da humanidade. Derrotas, sujeiras, insanidade, decisões erradas, atos passionais, caos.

Aquele Batman e Coringa que presenciei me trouxe tudo isso. O maniqueísmo foi repaginado de maneira 3D. Criou-se volume. Batman e Coringa não são faces de uma mesma moeda. São vértices de uma forma geométrica volumosa, cujo conteúdo seja foge da lógica. ordinária .Coringa está ali para desmascarar aqueles que planejam. As pessoas dos planos. Do prefeito ao homem-de-bem comum. É que talvez seja verdade: planos não funcionam, mesmo quando funcionam. Batman não está mais ali para ser herói. Está ali movido por paixões e convicções. E mata do mesmo jeito. Caráter é uma falácia. Autenticidade é o que une os dois. E eles não matam um ao outro. Porque nenhum dos dois operam com uma lógica convencional. Coringa não está atrás de dinheiro. Batman não está atrás de justiça para o mundo. E a identificação recíproca os mantém vivos. Os dois são seres completamente atormentados e reagem cada um a sua maneira a isso. Uma dose de irreverência cruel aqui. Uma pitada de idealismo sem escrúpulos ali.

O casal reproduziu no final a cena de amor que talvez tenha faltado no filme.

15 de jul. de 2008

trechos desquitados, idéias solteiras

Eu não sou a pessoa mais confiável para lhe dizer isso, mas se confiança fosse suficiente talvez não fosse nem necessário dizer. Entenda que cada palavra minha que antecede isso que preciso lhe contar não é demonstração de insegurança ou rastro de uma veia prolixa. Essas são meras circunstâncias. Já que sou eu quem carregou isso. E agora entrego em suas mãos. 

Viver é sua última possibilidade.

lo-ve

"O Deus do Amor vive num estado de urgência."

Platão

26 de jun. de 2008

cabeza

Lembança de Cassandra ao extinto cabeza marginal, quando andava por Madri.

liberdade

Quando parece que falta tempo, recolho minha atenção. Na escassez do tempo livre, não busco brechas de ociosidade. Invento liberdades para o tempo existente.

16 de jun. de 2008

5 de jun. de 2008

alas



Criação, design e texto: Vitor Freire
Fotos: Tiago Lima

Para o "cortado chico", belo fanzine de Vânia, Rebeca e Ceci em Buenos Aires.

4 de jun. de 2008

nina

Nina Simone pertence. Peço perdão a tia Lêda, mas essa frase é assim mesmo, com o verbo pedindo complemento, mas seu sentido já está completo. Nina reinventa uma música de pertencimento. Quando sinto as palavras reverberadas na sua voz saio de qualquer vazio e passo a pertencer, ainda que não saiba direito a quem ou ao quê. Atravessar "Wild is the wind" de mãos dadas com Nina é uma espécie de maratona sentimental. Díficil chegar a linha de chegada sem qualquer vencedor: selavagem é o vento e talvez seja a ele que pertencemos.

Love me love me love me
Say you do
Let me fly away
With you
For my love is like
The wind
And wild is the wind

Give me more
Than one caress
Satisfy this
Hungriness
Let the wind
Blow through your heart
For wild is the wind

(...)

3 de jun. de 2008

foi por pouco

Quando criança eu queria ser um comunista ninja jiraya alto e forte.

Desse tempo, acho que só permanece um pouco da criança: o comunista, o jiraya, o alto e o forte foram todos embora.

quantos pai-nosso, padre?

Preciso confessar algo sério. Confessar pra mim mesmo, quase. Sempre que eu entro no Unibanco ali da Augusta, eu tenho o pressentimento de que vou me apaixonar perdidamente.

E sempre quase acontece. Mas tudo ocorre tão rápido, que logo a paixão perde-se. Eu seria capaz de demorar uma vida inteira no olhar. Uma vida quase inteira. No último suspiro, tragava todo o resto.

Não posso mais entrar naquele cinema sozinho.

30 de mai. de 2008

participação


Em Belo Horizonte, conheci Fran. Ele poderia ter o apelido de Chico, como tantos Franciscos, mas é impossível olhar para o seu rosto e imaginar chamá-lo de qualquer outro jeito. Mais tarde talvez isso mude, mas não tem como olhar pro seu rosto e não advinhar que se chama assim. Fran. Ele passou algum tempo me chamando por outro nome. Eu, infelizmente contaminado de adultice, insistia em corrigi-lo. Percebi só depois que o nome era só um espaço sonoro oco - importante era o afeto que ele tinha me batizado de chamar. Lidar com criança é um teste impressionante de ser você mesmo demais. Não deve ser fácil. Mas é mágico. Tentei ser eu mesmo com esforço num final de semana em BH. De presente, trouxe um punhado de boas lembranças e situações.
No carro, ele iniciou repentinamente a falar sobre sua maneira de ver as relações. Começou dizendo que "mamãe participa com Tiago. Dandan participa com Sussu." Foi corrigido que esse último enlace já não existia mais. Então olhou pra mim e com um sorriso maroto foi certeiro: E você participa com quem?
Respondi aos sorrisos que eu estava sem participação no momento.

Trouxe isso, entre outras coisas. Não sai ileso.

perigo e medo

O lugar mais perigoso de São Paulo pra mim é ao telefone com minha avó. Sobre seus olhos, intermediados na sua voz imperativa e baiana, me divirto com todo o perigo que a cidade possui resumido em suas preocupações, receios, alertas, pedidos para Senhor do Bomfim me proteger. Em agosto completo seis anos em São Paulo, e quase oito que sai de Salvador. Mas seu discurso ao telefone é o mesmo, nem mesmo se preocupa em atualizar desgraças nas notícias do jornal. Através do receio dela é que percebo o perigo de São Paulo. Não há palavra minha que amenize. Poderia lhe dizer que os perigos que me amedrontam realmente estão em qualquer lugar. Medo, mesmo, tenho do que faço ou deixo de fazer com minha vida. E são os momentos mais intensos: quando viver vira orquestrar seus próprios medos. Uma sinfonia estranha com um solo de coragem no piano, ao final.

Ás vezes penso em sair de São Paulo. No Brasil não me imagino hoje morando em nenhum outro lugar. Logo vejo que antes de sair de São Paulo, preciso aprender a sair de mim. A ir embora de mim. A pé de preferência. Quando esse dia chegar, o título desse blog perde o sentido, e a vida dará sua cambalhota triunfante.

Medo.

27 de mai. de 2008

só pra constar

De onde vem essa ânsia por preencher o vazio daqui?
O que me incomoda mesmo é que estar vazio me trás a sensação de estar cheio de tudo. Cheio de nada. A barriga cheia de vento.

Preciso alimentar minha fome.

14 de mai. de 2008

vai saber

Tenho cura demais para pouca ferida. Isso machuca.

indecisão é decisão interna, pra dentro.

"A resposta mais rápida é vista como a certa. Um alívio para seguir com o trabalho, e mostrar clareza aos amigos. E os amigos bem-intencionados não vão nos ajudar. O que disserem a respeito do que aconteceu não será suficiente, o amor é um dialeto restrito aos dois que se amam.
Não reparamos no principal, Amor. Não reparamos que quando amamos o tempo não faz a mínima diferença. Amar será sempre recente: será ontem. Anos juntos e a sensação é que foi ontem. Anos separados e a sensação é que foi ontem. Ontem, ontem. Não há anteontem no amor. As lembranças mais longínquas já são corpo.
É uma pena, Amor, que somos mais decididos do que amorosos. Amar é não decidir. Decidir é terminar sempre."

Fabrício Carpinejar

11 de mai. de 2008

antes do princípio das coisas


"A questão não é saber se o amor nos aconteceu. Isso é tão relativo que o silêncio é melhor. Percebe-se melhor. Naqueles dias eu achava que não éramos nada, tu e eu. Podíamos dormir juntos. Podia sentir o teu suor sobre o meu peito, os teus ruídos na casa de banho, a forma como mastigas a pastilha elástica, elegante, por vezes entreabrindo a boca num sopro que se aproxima de um suspiro. Podíamos rir e chorar, contar as desventuras da adolescência, as maldades paternas, tudo. Podíamos sem consequências, porque nada do que te disse era verdade e, por isso, me poupava nas palavras, para não te castigar com tantas mentiras.
Tudo o que passámos, naqueles dias, não era definitivo, não tinha coordenadas futuras, seria, por fim, o crescendo que iria morrer de repente. Olhava-te no sono e pensava que sabia exactamente a data em que o amor iria desfazer. A ilha congelada no nosso abraço. Nos teus pensamentos era tudo o que fazia sentido. Eu tinha um prazo. Uma vida à minha espera, um regresso feito de poucas memórias. Ficarias em terra, náufrago de mim, sem perceber os destroços de nós.
Sabia exactamente o vermelho de sangue que te iria escorrer da alma, como uma tinta, como um salpico de dor demasiado forte para o teu corpo magro.
Não tenho coração, pensava nas noites em que ficávamos a olhar o reflexo da lua no atlântico.
Tu contavas a história do duende prateado que tem de acender as luzes todas do mar da tranquilidade. Ele que prometeu ao sol que pode dormir sossegado. Haverá sempre uma luz para espantar as coisas más. Quando me fui embora, não deixei morada. Hoje, quero que saibas que não te disse nada e quando te pedi para me morderes o coração era só para me certificar que ele existia no meu peito. Tu preferiste beijar-me, nunca me mordeste e, assim, fiquei sem saber."

morder-te o coração é uma pequena caixa de ferramentas para afetividade defeituosa. Mas essas pequenas chaves de fenda em forma de palavras não irão consertar-te em nada: surgem para inutilizar-nos de nós mesmos, um pouco, ainda que por poucos instantes.
No vigor da escrita da portuguesa Patrícia Reis, não há como puxar o ar, num desejo do fôlego, sem que junto não entre para os pulmões esse invisível - porém tão sentido - frescor da comoção de amar. Independente do contexto em que se esteja - casado, sofrendo, solteiro, apaixonado, vadio - as histórias entrecortadas de pequenos relatos - ele e ela, vão se encaixando e encaixotando-se sem piedade de nos abarcar. Penso que há ai um apontamento para ressignificar a dor amorosa - que não está somente nos corações partidos, mas da falta de inteireiza que tem nos afligido nesses tempos.
Uma surpresa. O livro é impecável, nas cores, na capa, nas páginas com pausas negras. Na contracapa, sorri debochando o aviso que Agualusa faz: "Este (pequeno) livro é precioso (e raro) e deve ser manuseado com cuidado: contém emoções."


"A felicidade não está no que acontece mas no que acontece em nós desse acontecer. A felicidade tem que ver com o que nos falta ou não na vida que nos calhou. Devo dizer-te que me não falta nada, quase nada."
Em nome da terra, Vergílio Ferreira (citado no livro da Patrícia Reis)

foto: Tiago Lima

1 de mai. de 2008

Um Brasil Sertanejo Ilustrado Caboclo Negro Tapuiá

A Pedra do Reino é um vigoroso mergulho audiovisual: algo que transcende qualquer mídia, seja tv, seja cinema - aqui chegou como dvd. É cuspe de cores sertanejas, sussurro ousado em pleno reino das palavras,  artesanato de idéias visuais, epopéia para um futuro arcaico do folclore nordestino, renascimento riscando de luz a irreverência fundamental da identidade brasileira: somos palhaços e reis. Não acompanhei pela tv, nem mesmo suas repercussões na mídia na epóca, mas é óbvio o seu "fracasso" diante do ibope. E não acredito que Luiz Fernando Carvalho tenha passado desapercebido por esse risco. Suassuna, na contracapa do dvd, diz que "se o sucesso não for igual ao seu êxito (do romance), isto somente se deverá ao fato de que a obra de Luiz Fernando Carvalho esta a frente do nosso tempo - por sua ousadia, por sua coragem (...)".
Não gosto muito dessa expressão "a frente do seu tempo". Mas entendo que determinados movimentos - nas ciências, nas artes, nas filosofias - tenha um tempo de digestão e maturação que irrompe o tempo cronológico. O fato é que, a mim desinteressa uma análise da obra enquanto produto televisivo. Numa chicotada única, me embriaguei dessas 4h36min da mais pura cachaça audiovisual brasileira: uma epifania de simbolismos, apontamentos certeiros sobre um nordeste rico de imagens, de idéias, de palavras, de cores, de crenças, e rico das misturas de todos esses elementos anteriores. Suassuna, com todas as ressalvas que alguém possa ter com ele, emplacou em seu romance a pedra fundamental de um sertão majestoso, um caldeirão cultural que vai de negros, índios, portugueses, mouros, entre outros. Luis Fernando Carvalho trouxe a verve de sua experiência em Lavoura arcaica (também chamado de hermético e incompreensível por alguns críticos), alimentou-se dos anseios grandiosos, de uma ópera nordestina de Glauber Rocha, respirou como de costume a verve literária de Suassuna, degluitiu uma farta iconografia de simbolismos e folclores do sertão, digeriu e inventou A Pedra do Reino. É um projeto sem cabimento. Um tormento. Há quatro dias sonho que sou amigo de Quaderna, e participo firmemente da Academia dos Emparedados do Sertão da Paraíba. 

Um carnaval de sentidos e sensações. E dar vazão ao que há de palhaço e ao que há de majestoso, em cada um de nós. 

29 de abr. de 2008

25 de abr. de 2008

individualidade, desamparo, falácias contemporâneas

"Amor é o que sentimos por quem atenua nossa sensação de desamparo"

Folha - O individualismo tem uma conotação pejorativa. Por que valorizá-lo?
GIKOVATE - Individualismo não é egoísmo. O egoísta gosta de turma, porque é aí que encontra um generoso para "mamar na teta". O generoso também não é individualista porque tem a necessidade de dar. O individualismo resolve o dilema entre o egoísmo e a generosidade: é eu me entender como uma unidade e, se eu me sentir desamparado, resolver isso por mim mesmo, e não por meio do outro. Isso não significa não me relacionar, mas o outro deve ser escolhido por afinidade intelectual, como os amigos.

Folha - Se esse encontro não ocorre, é possível ser feliz sozinho?
GIKOVATE - Meu livro tem dois finais: um é ficar sozinho; outro, bem-acompanhado. Ambos representam a vitória da individualidade. Posso jogar tênis sozinho ou em dupla. O que não posso é jogar com um parceiro desleal, ciumento e que queira mandar em mim.Ninguém aceitará gente querendo mandar. Isso não é ser egoísta. O egoísmo se caracteriza pela intolerância à frustração. O independente resolve agüentar suas dores. Além disso, hoje, o mundo é mais favorável a pessoas sozinhas.

Folha - Como o sexo ocorre nesse amor que parece amizade?
GIKOVATE - Isso é um problema porque, em nossa cultura, o sexo vai melhor quando há briga. As pessoas gostam mais de transar com inimigos do que com amigos. Isso mostra como precisamos avançar no entendimento da questão sexual. Ainda é preciso inventar um erotismo que não seja comprometido com vulgaridade e violência. Para superar isso, é preciso ser criativo e entender que as leis da atração sexual não são as mesmas das relações afetivas de boa qualidade. Na hora do sexo, talvez seja necessário mudar o canal, no qual o outro tem de deixar de ser o parceiro sentimental para ser um outro. É assim que os casais que se amam de verdade descobrem estratégias para que o sexo flua.

- Entrevista completa aqui.

+
Uma História de Amor... com Final Feliz
Flávio Gikovate

6 de abr. de 2008

impasses

Porque falar de amor é falar de todos os assuntos realmente relevantes. My blueberry nights é bonito e simples, um punhado de diálogos delicadamente costurados nesse estranho tecido das relações. Não sabemos perder. Não sabemos nos perder. Insistimos numa ilusória eternidade por pura covardia de compreender-nos melhor, o tempo, a vida, o outro. Ninguém é capaz de sobreviver sem matar. Escolhas são pequenos assassinatos no cotidiano. Displicente, carregamos nosso próprio cemitério de impasses. Como é possível suportar dizer adeus para alguém que você até pouco tempo nem conseguia imaginar viver sem? Norah Jones pergunta no filme. Não sei. Mas sei que não dá para ficar nesse eterno movimento de atualização de velórios. Se não há como aprender a morrer, que surja mais sabedoria para matar. Porque a vida pede passagem. Wong kar wai é um Vinicius de Moraes oriental que decidiu fazer filmes ao invés de música. Que seja eterno, enquanto dure. E que seja terno, como sugere Otis Redding na trilha do filme.

"(...)
now it might be a little bit sentimental no
but she has her greavs and care
but the soft words they are spoke so gentle
yeah yeah yeah
and it makes it easier to bear
oh she wont regret it
no no
them young girls they dont forget it
love is their whole happiness
yeah yeha yeah
but its all so easy
all you got to do is try
try a little tenderness
(...)"

Otis Redding é um chute impiedoso. Maravilhosamente impiedoso.

4 de abr. de 2008

cuidado

O caráter jamais foi uma herança simples. Naquele inventário sentimental, todos contorceram-se em suas cadeiras. O olhar é sempre mais gordo na ausência. Reclamações na beira da boca, aos mais respeitosos. Disponho aqui de toda a crueldade necessária para ser homem. Eu nunca aprendi a cuidar de ninguém. Nunca. Não há qualquer jogatina semântica nessa frase. Cuidar requer qualquer tipo de trato, de jeito, de traquejo, de disposição: não posso dizer porque simplesmente não sei. Observo de longe, com curiosidade, poucas vezes, admito, com admiração. Porque não admiro o que acredito que não posso alcançar. Isso não é astúcia metáforica. É simples. Apesar do meu desconhecimento. Se não há destinos marcados ou coincidências cósmicas, também não é certo que temos verdadeiro controle sobre essa trajetória. A minha. A sua. Não creio mais em humildade, existe sim um desconhecimento da envergadura dos seus passos. Seja por falta de oportunidades, por covardia. Agora isso não me interessa. Lembro que ganhei um pintinho numa feira de animais. Eu jamais poderia imaginar quão significativo aquele ser amarelo poderia representar. Em nenhum devaneio egocêntrico, jamais quis que minha vida fosse um livro ou virasse um filme. Mas gostaria de ter algo dela numa música. E aquele pintinho amarelo seria o refrão. Seria meu eterno retorno. Seria o flashback que vai se atualizando com desenvoltura melódica. Talvez não fosse tão pop. Mas teria um refrão. Ainda que fosse trocando as palavras-chaves, o ritmo dos versos continuaria intacto. Porque eu não consegui cuidar daquele pintinho. Mas veja bem: isso aqui não é um burburinho de autocomiseração. Eu não soube cuidar daquele pintinho porque ele era vivo. Porque ele corria. Porque ele era amarelo. Eu não sei o porquê, esse é o fato. É simples, apesar de todas as consequências desastrosas que isso carrega. Eu fugi do pintinho. Aos 5 anos eu corri assustadissimo. Eu tinha medo daquilo. E não tinha a menor consciência. Não tive culpa nenhuma. O pintinho só surgiu ali para que a música viesse a ganhar uma metáfora bonita. Aquilo não foi uma premonição, foi apenas um pintinho correndo atrás de mim. E eu tive medo. E o fato é que, descreio em coincidências, eu vim me construindo na certeza do descuido, jamais na hipótese do cuidado. E não há psicologismos. Não vou revigorar velhas memórias da relação paterna. Ainda que acredite que o maior legado que minha mãe me passou foi a independência. Também não vou revisitar esses espaços tão pouco fertéis. E só, mesmo com toda potência afetiva, eu sou eminentemente só. E não há qualquer ressalva ou vitimização. Em fato, eu não consegui inventar outra alternativa. E cada um precisa construir seu próprio chão. Eu era sim aquele que jogava bola na quadra a tarde inteira, e os colegas queriam no time. Mas eu era também aquele que passava horas sozinho, gerenciando minha orquestra de playmobils. Se não sei cuidar, inclui-se o óbvio fato: eu não sei me cuidar. E não posso acreditar que cuidado é a única expressão de carinho. Meu afeto é rizomático e encontra vertentes variáveis para fluir. Se não te cuidei, seja uma mãe distante, uma ex-namorada errante, um amigo hesitante, foi porque não sei - e mais do que isso, como não consigo sentir falta de me cuidar, ainda é díficil pra mim conceber a falta que isso faz ao outro. Não há fatalismos. Eu não sou mais o menino que correu do pintinho amarelo. E tampouco serei, quando morrer, igual a esse que está a escrever nesse momento. E o mais estranho: o que me motivou a escrever isso aqui, foi ter visto em algum lugar que a enfermagem é "a arte de cuidar e também uma ciência cuja essência e especificidade é o cuidado ao ser humano". Cuidar é uma arte. E arte, do latim, é uma habilidade, uma técnica. Não há como sustentar um vínculo sem o cuidado. Eu me reinvento no susto e no tento. Um velho me lembraria o tempo. E ele vai mostrando a insustentabilidade de certos comportamentos - puro requinte de sobrevivência. O fato é que sou um velho também. Eu devorei meu avô. Nem uma mordida. Mas ele está aqui. E se eu tivesse um útero, afirmaria sem problemas que estou grávido dele. Meu avô também não era muito bom nessa arte de cuidar. Mas era genial nas maneiras como fazia para ir demonstrando o afeto. Era tão espontâneo, que mesmo que tenha me faltado um verdadeiro abraço apertado ou um carinho mais demorado no rosto, seu olhar me trouxe até aqui. E sendo velho, tenho menos sabedoria e muito cansaço. Minha felicidade é sempre para chegar ao próximo ano. Não consigo carregar minha felicidade para daqui há dez anos. E é simples. Mas não vivemos numa epóca onde o que é simples é fácil. Muito pelo contrário. Ao cuidar de quem amo, fico intacto, não há melhor jeito de me cuidar. Vai até num esbarrão. Cuidar é dedicar, dispor, permitir, intuo. Não sei, só intuo. Não será fácil. Mais uma arte. É minha possibilidade de vida, não um talento ou escolha.

Meu avô não me faz mais falta. Descobri isso hoje. Me faz presença.

surpresa

"Sempre me surpreendo como duas pessoas passam, de uma hora para outra, do amor incondicional pro vazio absoluto"

Julie Delpy, no filme Dois dias em Paris

1 de abr. de 2008

grande e duro

"No mundo atual está se investindo cinco vezes mais em remédios para virilidade masculina e silicone para mulheres do que na cura do Mal de Alzheimer. Daqui a alguns anos, teremos velhas de seios grandes e velhos de pinto duro, mas eles não se lembrarão para que servem."

Dráuzio Varella

28 de mar. de 2008

problema

Traga-me um problema, por favor. 
O homem desorganizava a rua com seu pedido inconsequente, incomodando aquele povo suado, engravatado, saltos e tropeços.

O homem precisava de problemas. Aquilo me inconformou. Ali, sem reação, estirado em sua frente, fiquei sem forma. O homem gritava pedindo por problemas, com sede, quase uma fome. 

O pedido de esmola já ficou banal. Não comove. Aquele homem pedindo "traga-me, pode vir, problemas, preciso deles, dos mais escabrosos". Aquele homem alterou completamente a trajetória de todos que passaram por ali.

22 de mar. de 2008

realidade artesenal

"Todo jornalista que não é muito estúpido ou cheio de si para perceber o que acontece no mundo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável".

Janet Malcom

21 de mar. de 2008

acordar e dormir

Gostaria de acordar como eu durmo, e dormir como eu acordo. 
Agitado, durmo querendo não me render ao fim do dia, arrastando a cabeça fervilhante pelos corredores do sono. Quando acordo, sou quieto, tranquilo, preguiçoso sempre me falta mais sono - talvez o sono que não presenciei quando fui dormir.

Essa inversão é meu descompasso.  

12 de mar. de 2008

paladar



Não é o mistério ingrediente para esses dias. Existe sim uma pitada do que nos falta. O que reconheço talvez seja ainda mais inusitado: o desconhecido tem curiosidade e desejo, mas a memória da língua reinventa sabores. Ao calor de um fogo brando, um suspiro ansioso.
Para remontar o que nos alimenta.

11 de mar. de 2008

presente ausente

E ela me estende a mão: não é cumprimento, tampouco um pedido de apoio para se levantar. A mão aberta. Ela me estende a mão e diz: te entrego meu vazio.

7 de mar. de 2008

dose

Respeito os cervejeiros, os abstêmios, os crentes. Mas existe um lugar somente habitado com uma boa dose de whisky. Um lugar menos racional, e por isso mesmo, onde cabe muito mais coisas. Saravá Vinicius de Moraes!

ciranda insana

Entre todos os quereres, não quero mais. Querer. Solte a mão porque a rua já nos atravessou. Sem rumo. Todo amor é perdido, inconveniente é essa sina por enquadrá-lo, dar-lhe certeza e segurança. Frequento olhares eufóricos, ainda aceno para os desvios de olhares, certos assuntos não se comportam bem na mesa. Do bar. Ainda há a vã tentativa de mudar de mesa, de mudar de bar, altera-se a cor da bebida. Uma trégua, escuto ao fundo. O amor pede uma trégua. Me esqueçam, pelo menos essa noite. Corra, com o puro delírio do corpo. Descobri que no frenesi dos passos rápidos, na corrida, acabo por me distanciar da minha cabeça. O suor é sempre nosso parente mais autêntico. Aquele tio que acumula verdades durante o ano, e sem medidas despeja na ceia de Natal. Invento famílias pela observação. Meu avô era minha família inteira e agora sou órfão do meu filho. Meu pai não é minha família, meu pai será sempre algo de mim que foi além. Minha mãe nunca foi minha família, mesmo quando tentou ser uma família inteira. Família é esse embaralhado de vínculos, esses valores estranhamente preservados, obrigações delicadas, prazeres e falácias sobre sangue do meu sangue. Minha mãe é tão anterior a família, que nunca consegui entender ao certo o porquê da família. Já não cabe mais aquele clichê de filho de pais separados. Eu sou o filho separado de pais que nunca se reuniram. Persisto o equívoco, errar também é um desafio. Já quase não sinto fracasso. Levanto os olhos, revejo antigos e novos amigos, busco fora do tempo aquelas esquinas onde tudo corria com um pouco mais de vida, mais amor, menos fé nessa maldita eternidade das relações, um pouco mais de descuido, porque o cuidado também tem esse efeito colateral: engessa. Não há fórmulas secretas e quem já não as procurou: seja nos livros de auto-ajuda, nas fileiras da igreja prometida, nas terapias de tantas vertentes. Não há como condenar. Fui uma criança sem parâmetros. Díficil. Os amenos diriam, "muito vivo". Os julgadores, "um capeta". Decepei uma plantação inteira apenas para provar que existia sim um jiraya na Bahia. Meu avô não disse uma palavra. Dezena de anos depois, a única frase de ressalva sobre mim: "ás vezes você é muito crítico". Sou tão exigente comigo, que muitas vezes transborda ao outro. Um sozinhamento cruel que estipula suas próprias capacidades e define limites arbitrários, e impiedosamente pune cada passo que não for consistente suficiente para chegar lá. Inevitável que ao meu redor, isso escape. Estar sozinho há muito tempo deixou de ser ato de auto-suficiência ou requinte de egoísmo. É o caminho mais legítimo para chegar ao outro lado. Ao outro. De frente. 

De repente.

13 de fev. de 2008

Viaduto

Agora estamos apenas nós dois aqui. Eu e esse incômodo generoso. Não o questiono. Nossa conversa, nesse exato instante, é puro desinteresse de palavras, abdicamos das falácias sobre compreensão. Amai o próximo como a ti mesmo. Talvez esteja aí a falência desse amor ocidental: já imaginaram quão sufocante é impor ao outro o jeito que você se ama? Como acolher a diferença? Como permitir brechas para que o outro consiga criar e recriar novas possibilidades nesse amor que está sendo compartilhado. Ficamos pensando sobre isso por horas. Agora, apenas nos silenciamos. Foi no viaduto da Doutor Arnaldo que nos encontramos. Gosto de revisitar lugares por onde já filmei. Ali fiz meu primeiro vídeo em São Paulo, com uma morena de "ancas largas" dançando no canteiro central. Dessa vez, um novo encontro. Um vulto. "Por quê?" - um grito feminino. Pessoas aglomeram-se. Apressei o passo e me aproximei. Lá em baixo, estava um senhor, que não deveria ter mais do que 60 anos. Nunca mais aquela imagem sairá da minha cabeça. Com esforço, consegui desviar o olhar. Um resto de agonia, movimentos leves, talvez os últimos de uma vida. Um sangue sujo de asfalto. Quando olhei para o lado, o encontrei. Não nos cumprimentamos, eu já sabia que iria voltar pra casa com ele. Com esse incômodo. Nas primeiras quadras, ainda tentei rotulá-lo ou encontrar um apelido fácil para chamá-lo. Por quê o suícidio nos incomoda tanto? Lembrei das pessoas ali no viaduto. Depois fui lembrando das várias formas que o suícidio aparece, sempre como algo incógnito e de alguma maneira, ainda que indiretamente, depreciativo, como uma fraqueza ou algo abominável, absurdo. Decidir morrer é absurdo. O incômodo me acompanhava.

Acabo de realizar a montagem de um documentário intitulado "Sobreviventes". E nesse momento não me sai da cabeça aquele senhor e seu sangue no asfalto e a sua decisão sobre viver: morrer. A liberdade absoluta só existe em momentos limites, situa-se em certa altura, no filme. Agora, sentado ao lado desse incômodo, tento me aproximar dessas pessoas que preferiram eternizar essa liberdade absoluta. Um infortúnio, uma falência, uma doença, uma decepção amorosa, um ato político. E talvez não seja apenas uma questão de poder sobre sua própria vida ou livre-arbítrio. Quantas pequenas mortes são necessárias para construir a definitiva? No tropeço das contas, uma antecipação. Morrer é algo que dispensa comentários.

Decidir morrer compensa uma vida inteira de comentários?

O incômodo compartilhou comigo uma idéia para um filme ou algo parecido: histórias compostas desses momentos que antecedem o suícidio. Um filme feito de diários das últimas semanas, de cartas de despedidas, de caminhadas silenciosas pelos locais escolhidos para dar-se fim.

Fiquei amigo desse incômodo.

3 de fev. de 2008

pensata sobre edição

"Talvez a edição seja o mais atrativo para as pessoas no cinema porque é isso o que elas gostariam de fazer com suas vidas: poder editar, cortar, inverter a ordem de fatos, situações, etc."

Walter Murch

20 de jan. de 2008

Rilke

"How to bear, how to save the visible, unless by making it the language of absence, the invisible?"

"Como suportar, como salvar o vísivel, senão fazendo dele a linguagem da ausência, do invisível?"

1 de jan. de 2008

cinema e imaginação

“(Quando realizo um filme) uma das tarefas é achar imagens que não bloqueiem a imaginação do espectador”
Jean-Marie Straub