27 de set. de 2007

Ele, mais uma vez

ISTOÉ – Como estimular o gosto pela leitura?
Mia Couto – É preciso entender que os meninos estão deixando de ler os livros porque estão deixando de ler o mundo, de ser capaz de ler os outros, de ler a vida. Estão perdendo a disponibilidade de estar aberto aos demais, estar atentos às vozes, saber escutar. Há toda uma pedagogia que é preciso ser feita no conjunto. Não se pode isolar o livro e torná-lo como se fosse bandeira única desta luta. Uma coisa que aprendo na África é esta habilidade de se contar histórias e fazer com que o livro seja uma maneira de estimular, que os meninos não sejam só consumidores de história, mas também produtores de história. Quem não sabe contar uma história é pobre de alguma maneira.

6 de set. de 2007

madrugada

Vejo o esforço quase autônomo de minhas mãos buscando delinear no vento um jeito de convencer-me de algo que... eu não saberei descrever. É como se meu corpo estivesse argumentando numa agitação algo que é anterior a mim. Na verdade, que ordem é essa? Por quê creio que isso que delega consciências e razões é anterior? É inevitável, não sei pensar de outra forma. Mas é isso: é porque estou a pensar. Eu sei que parece óbvio. Na verdade, eu estou escrevendo isso para mim mesmo, porque vai ser muito díficil dormir sem algum tipo de palavreamento para isso que me suscede. Algo em minhas mãos realmente está buscando indicar para um lugar onde não conseguirei chegar com a razão. É um tremor de noite desdormida, esse estado estranho onde os olhos são madrugadas e mesmo recebendo os primeiros risos do sol, não é um sol, é um sol madrugado, escrevo essas palavras madrugadas, enfim. Entre uma frase e outra solto as mãos e deixo-as voltarem ao seu processo. Sinto que essas mãos começam a habitar um terreno do qual eu pouco participo. Talvez ainda seja eu. Provavelmente sim. Essa agitação nômade vai caminhando pelo meu corpo, incitada pelas mãos. A consciência começa a questionar-me coisas estúpidas. O que bebi? O que ingeri? Eu não gostaria de responder, mas a consciência também procede de maneira semi-autônoma, como se o questionamento ecoasse incomodando até eu me dispor a responder. Confesso que há um pouco de álcool, uma cachaça mineira. Mas não é esse o cerne, reivindico, numa discussão comigo mesmo. Tento preservar o que sou em meio a todas essas partes independentes de mim. É díficil, não consigo. Porque, afinal de contas, essas são as minhas mãos. Ainda. E com algum esforço, a consciência já está novamente ocupada de entender esse frenesi de mim. É tudo um devaneio, uma ilusão, um estado alterado de consciência, uma coisa qualquer. Mas que alteração? Esse é o problema. Eu estou aqui. E a cada frase eu paro, e meu corpo parece ser muito mais eu do que eu jamais fui. Acabei de ir até a sala, o sol incide e estou bronzeado de madrugadas. Existe alguém antes de mim, com todo esse corpo e essas mãos, que também pode ser eu. A consciência não é vilã de nada. Ela está aqui, meio boba, sem entender muita coisa. E é isso. Numa madrugada repleta de esforços por sentidos, conexões sedentas por desfechos, saídas, conclusões...o dia amanhece e meu corpo trás um suspiro. Preciso seguir minhas mãos, para não me perder nessa vida tão sem sentido.

3 de set. de 2007

Santiago

"- A vida é uma decepção?
- Sim, responde sorrindo."
(Viagem a Tóquio, Yasujiro Ozu)

Santiago é o resgate de um cinema possível, um cinema de pertencimento: colocar-se no que você faz, talvez o único caminho íntegro para qualquer coisa nessa vida sem sentido.

Entrevista na Bravo! feita por Armando Antenore:

BRAVO!: Você é um documentarista reconhecido que sempre zelou pela discrição. No entanto, em Santiago, resolveu se expor publicamente. Por quê? É uma autosabotagem?
João Moreira Salles: Não, talvez seja exatamente o contrário uma tentativa de me salvar, de me curar. Fiz Santiago pensando sobretudo em sanar as aflições que me rondavam a alma e que, de certo modo, ainda me atormentam. Trata-se de um filme essencialmente terapêutico. Quando decidi rever o material que rodei em 1992, tinha 43 anos e atravessava uma intensa crise. Estava adquirindo a consciência muito profunda de que as coisas realmente passam e de que não conseguimos recuperá-las. Para mim, que não acredito em nada, que não alimento nenhuma fé metafísica, a morte e a passagem do tempo são problemas imensos, obsessões que sempre me acompanharam. A diferença é que, com 30 anos, possuía apenas uma compreensão abstrata, intelectual do assunto. Agora, a compreensão se tornou concreta. Compreendo com as tripas. Intuitivamente, julguei que retomar o documentário inacabado me ajudaria a organizar o caos em que imergira. Há quem, no meio de uma tempestade existencial, resolva usar drogas, viajar a Lourdes e clamar por um milagre, conhecer o Dalai Lama ou praticar esporte. Eu resolvi fazer um filme.

BRAVO!: Em que sentido fazer o filme poderia contribuir para tirá-lo da crise?
Pelo fato de que Santiago também estava às voltas com a passagem do tempo, ainda que à maneira dele. As listas de celebridades que elaborava pretendiam imortalizar aquela gente toda. Santiago tinha uma concepção de vida e morte quase helênica e, por isso, bela. Para os gregos, um homem morre quando o esquecem e vive quando o lembram. Se Homero lembra, o guerreiro Aquiles existe. Se Homero não lembra, Aquiles deixa de existir. Assim, realizar um filme sobre Santiago significava realizar um filme sobre as questões que me assombram. Era um jeito inconsciente de me aproximar do problema com serenidade, sem tanto horror. Digo "inconsciente" porque, quando decidi resgatar as imagens, não fazia idéia do que iria encontrar ali. Não me recordava das cenas.

BRAVO!: E funcionou? Concluir o filme lhe trouxe paz?
Não por completo. Mas tirou muito do veneno, da pimenta que o problema destilava em mim. Só os loucos se tranqüilizam inteiramente com a consciência da finitude... Ao montar o filme, percebi um aspecto na figura de Santiago que me comoveu e que contribuiu para me apaziguar um pouco. As listas que ele transcreveu durante décadas não têm função prática nenhuma. Revelam-se inúteis, se levarmos em conta a noção de utilidade que costumamos atribuir às coisas. Entretanto, Santiago agarrou-se àquela inutilidade na esperança de engrandecer a própria vida. Deu sentido à sua existência dedicando-se a algo que não é nada. Agiu como cada um de nós deveria agir. Até porque, no limite, tudo o que produzimos acaba se mostrando tão inútil quanto as listas de Santiago. O próprio cinema é inútil.