20 de dez. de 2007

Sobre-voantes

Iniciei o processo de edição do documentário "Sobreviventes" dirigido por Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro. Nós somos a invenção de limites - próprios, desenvolvidos, adquiridos, forjados. As reverberações que uma situação-limite pode ter em nossas vidas é algo que ultrapassa o discurso racional, as consciências e os discursos articulados, rompendo estratos, estigmas e convenções sociais: no limite somos puro delírio da carne. Além das histórias reconhecidas de sobrevivência - violências, acidentes, torturas - existe também uma outra camada, a sobrevivência que flerta com a metáfora mas não escapa de suas realidades. Um percurso que tropeça na injustiça, no preconceito, na miséria, na fatalidade mas que almeja algo audacioso: encaminhar para a vida. Porque uma vida que dialogou tão intimamente com a morte, por certo, carrega um bom punhado de experiências que valem a pena conhecer. 

Desafio lançado. Buscar entre todos os olhares, permitir um que me caiba para esse filme. 

Corda

“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem — uma corda sobre o abismo”.   

Nietszche

1 de dez. de 2007

Mãe Estela e Detinha

O cabelo branco crespo de mulher velha. A negra pele de branca velhice na mulher. Os passos, O passo, passáros para Oxum. Todos os percursos que carregam até aqui puxam terras. Em qualquer terra, tenha cimento e asfalto ou barro e poeira. Ao chegar aqui, todas as terras são da raça d'Africa. E talvez, esse terreiro que vos piso, seja na Bahia o lugar menos africanpopizado. É onde o ancestral não é antigo, o sagrado não é clichê, a reverência não é conservadorismo, o espírito não é falácia.

Aqui nesse tempo, desimporta sussurros lamentosos. Fomos todos e nos alcançamos. Dançamos.

21 de nov. de 2007

do baú

pequenas histórias partidas

feito nos tempos de puc, anos atrás. dizia-se hiperlinguagem, interatividade, etc e tal. como se a literatura precisasse de computador e internet para se tornar isso tudo.

4 de nov. de 2007

anotação recuperada

"Eu poderia voltar a falar de todas as coisas que me fizeram chegar até aqui. E seria, novamente, inútil. Primeiro, porque chegar aqui foi resultado do que não fiz, do que deixei de fazer, do que deixei de falar, do gesto que deixei de arriscar, da palavra ousada ou da arrogância errada. Não é uma questão de arrependimento, ressalto. Pelo contrário, é como olhar para trás e vislumbrar como todos os passos não dados foram fundamentais para essa trajetória. Também não é uma ode ao erro. Porque o equívoco é sempre um mistério, uma incógnita: nunca sabemos ao certo o que fazer após um erro. Pode vir a ser o pressuposto para o acerto, um aprendizado, um arrependimento. O equíovoco nunca mostra sua face no primeiro encontro.
Pensando no que fiz, no que não fiz, no chegar aqui. Talvez chegar aqui seja uma ilusão passageira. Uma composição geográfica para me advertir novos ares, um esperado retorno ao meu país dentro de uma cidade irreconhecível. Aqui, as pessoas são sempre irreconhecíveis. Quando cheguei nessa cidade pela primeira vez lembro da sensação estranha que dá no ouvido, ao descer do avião. Mantive aquela sensação estranha, como uma náusea acolhida, um zunido pra dentro, um incômodo que se torna amigo, durante todas as férias. Não tive coragem de reclamar ao pai distante. São Paulo pra mim era aquela sensação, quando o avião pousa. Uma inusitada, nova e estranha sensação. Com o estranhamento ao meu lado, cheguei aqui."

25.09.2002
pequena anotação recuperada pouco depois de chegar em São Paulo.

3 de nov. de 2007

sueño

Sonhei que fui chamado para adaptar Trilogia Suja de Havana para o Cinema. Não sei direito o porquê desse sonho, faz tempo que nem vejo nada do Guitiérrez, mas simplesmente, sonhei. Um soco. E outro. E outro. Nocaute dentro das regras do round. Depois, um pisão na cara.

23 de out. de 2007

Recebi de Laura Wrona

"E as políticas de sustentabilidade são hoje um band-aid em fratura exposta. Paliativos que terão pouco impacto na força acumulada pela inércia da cultura. É a cultura que alavanca o movimento maior de massas, de bilhões que não poderão mudar de curso de um dia para o outro. Está na hora de não corrermos mais para a frente. Para o sustento que está sempre na frente. Estabelecer economias de crescimento como única opção de futuro não exige grande dom profético para antever o desastre. Não será bolha, será implosão mesmo. É hora de olharmos para o lado e até para trás e esperarmos por uma nova revolução na cultura humana. Uma revolução que se valha de outras sensibilidades que não apenas a racionalidade. Foi ela que construiu todas as revoluções do século XIX e que afetam a nossa cultura até hoje. Esse iluminismo cultural desbancou a vida e ungiu o sustento. As várias fomes da vida se fizeram em uma única, a do sustento, e está difícil alimentá-la.

O dia do Kipur é um dia para se ter coragem de falar sobre acertos que provavelmente não faremos. Mas essa prática não se faz vazia por conta da dificuldade em promover transformação. É que queremos salvaguardar a lucidez e mantê-la como uma chama para que, em condições favoráveis, ela realimente a labareda de uma nova cultura. Uma cultura na qual, por exemplo, crescer e ter mais não signifique sempre qualidade, em que as oportunidades talvez estejam em não crescer, ou até em decrescer. Celebrar a lucidez nos dá a dimensão de nosso pecado; jejuar dá espaço para outras fomes. E só quando essas fomes forem despertas no ser humano haverá sustento para todos."

NILTON BONDER é rabino e escritor.

20 de out. de 2007

Tião em BH

O vídeo-documentário 'Tião reciclado' foi selecionado no forumdoc.bh.2007 - Festival de Filme documentário e Forum de Antropologia, Cinema e Vídeo.

Saravá Tião!

BH, aí vou eu.

13 de out. de 2007

Postal

En el mar de la tarde,
liso y calmo,
una bañista solitaria
entra hasta la cintura.

La mitad de arriba
observa algo que no vemos.
La mitad de abajo
no existe.


Plan B

Todas las decisiones equivocadas de tu vida
hicieron que llegaras aquí.

Bastó una correcta para alejarte.

+ Luis Chaves, poeta da Costa Rica.

quinta linha

"Vejo uns que saem e os que ainda não entraram, esperando por alguns que não estão vendo quem sai."

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego.
Pág. 161, 5ª linha.

Como foi pedido!
A parte de repassar, deixo em aberto. Quem quiser repetir a história, pegar o livro mais próximo, seguir as instruções e publicar em seu blog, faça e depois avise aqui.

27 de set. de 2007

Ele, mais uma vez

ISTOÉ – Como estimular o gosto pela leitura?
Mia Couto – É preciso entender que os meninos estão deixando de ler os livros porque estão deixando de ler o mundo, de ser capaz de ler os outros, de ler a vida. Estão perdendo a disponibilidade de estar aberto aos demais, estar atentos às vozes, saber escutar. Há toda uma pedagogia que é preciso ser feita no conjunto. Não se pode isolar o livro e torná-lo como se fosse bandeira única desta luta. Uma coisa que aprendo na África é esta habilidade de se contar histórias e fazer com que o livro seja uma maneira de estimular, que os meninos não sejam só consumidores de história, mas também produtores de história. Quem não sabe contar uma história é pobre de alguma maneira.

6 de set. de 2007

madrugada

Vejo o esforço quase autônomo de minhas mãos buscando delinear no vento um jeito de convencer-me de algo que... eu não saberei descrever. É como se meu corpo estivesse argumentando numa agitação algo que é anterior a mim. Na verdade, que ordem é essa? Por quê creio que isso que delega consciências e razões é anterior? É inevitável, não sei pensar de outra forma. Mas é isso: é porque estou a pensar. Eu sei que parece óbvio. Na verdade, eu estou escrevendo isso para mim mesmo, porque vai ser muito díficil dormir sem algum tipo de palavreamento para isso que me suscede. Algo em minhas mãos realmente está buscando indicar para um lugar onde não conseguirei chegar com a razão. É um tremor de noite desdormida, esse estado estranho onde os olhos são madrugadas e mesmo recebendo os primeiros risos do sol, não é um sol, é um sol madrugado, escrevo essas palavras madrugadas, enfim. Entre uma frase e outra solto as mãos e deixo-as voltarem ao seu processo. Sinto que essas mãos começam a habitar um terreno do qual eu pouco participo. Talvez ainda seja eu. Provavelmente sim. Essa agitação nômade vai caminhando pelo meu corpo, incitada pelas mãos. A consciência começa a questionar-me coisas estúpidas. O que bebi? O que ingeri? Eu não gostaria de responder, mas a consciência também procede de maneira semi-autônoma, como se o questionamento ecoasse incomodando até eu me dispor a responder. Confesso que há um pouco de álcool, uma cachaça mineira. Mas não é esse o cerne, reivindico, numa discussão comigo mesmo. Tento preservar o que sou em meio a todas essas partes independentes de mim. É díficil, não consigo. Porque, afinal de contas, essas são as minhas mãos. Ainda. E com algum esforço, a consciência já está novamente ocupada de entender esse frenesi de mim. É tudo um devaneio, uma ilusão, um estado alterado de consciência, uma coisa qualquer. Mas que alteração? Esse é o problema. Eu estou aqui. E a cada frase eu paro, e meu corpo parece ser muito mais eu do que eu jamais fui. Acabei de ir até a sala, o sol incide e estou bronzeado de madrugadas. Existe alguém antes de mim, com todo esse corpo e essas mãos, que também pode ser eu. A consciência não é vilã de nada. Ela está aqui, meio boba, sem entender muita coisa. E é isso. Numa madrugada repleta de esforços por sentidos, conexões sedentas por desfechos, saídas, conclusões...o dia amanhece e meu corpo trás um suspiro. Preciso seguir minhas mãos, para não me perder nessa vida tão sem sentido.

3 de set. de 2007

Santiago

"- A vida é uma decepção?
- Sim, responde sorrindo."
(Viagem a Tóquio, Yasujiro Ozu)

Santiago é o resgate de um cinema possível, um cinema de pertencimento: colocar-se no que você faz, talvez o único caminho íntegro para qualquer coisa nessa vida sem sentido.

Entrevista na Bravo! feita por Armando Antenore:

BRAVO!: Você é um documentarista reconhecido que sempre zelou pela discrição. No entanto, em Santiago, resolveu se expor publicamente. Por quê? É uma autosabotagem?
João Moreira Salles: Não, talvez seja exatamente o contrário uma tentativa de me salvar, de me curar. Fiz Santiago pensando sobretudo em sanar as aflições que me rondavam a alma e que, de certo modo, ainda me atormentam. Trata-se de um filme essencialmente terapêutico. Quando decidi rever o material que rodei em 1992, tinha 43 anos e atravessava uma intensa crise. Estava adquirindo a consciência muito profunda de que as coisas realmente passam e de que não conseguimos recuperá-las. Para mim, que não acredito em nada, que não alimento nenhuma fé metafísica, a morte e a passagem do tempo são problemas imensos, obsessões que sempre me acompanharam. A diferença é que, com 30 anos, possuía apenas uma compreensão abstrata, intelectual do assunto. Agora, a compreensão se tornou concreta. Compreendo com as tripas. Intuitivamente, julguei que retomar o documentário inacabado me ajudaria a organizar o caos em que imergira. Há quem, no meio de uma tempestade existencial, resolva usar drogas, viajar a Lourdes e clamar por um milagre, conhecer o Dalai Lama ou praticar esporte. Eu resolvi fazer um filme.

BRAVO!: Em que sentido fazer o filme poderia contribuir para tirá-lo da crise?
Pelo fato de que Santiago também estava às voltas com a passagem do tempo, ainda que à maneira dele. As listas de celebridades que elaborava pretendiam imortalizar aquela gente toda. Santiago tinha uma concepção de vida e morte quase helênica e, por isso, bela. Para os gregos, um homem morre quando o esquecem e vive quando o lembram. Se Homero lembra, o guerreiro Aquiles existe. Se Homero não lembra, Aquiles deixa de existir. Assim, realizar um filme sobre Santiago significava realizar um filme sobre as questões que me assombram. Era um jeito inconsciente de me aproximar do problema com serenidade, sem tanto horror. Digo "inconsciente" porque, quando decidi resgatar as imagens, não fazia idéia do que iria encontrar ali. Não me recordava das cenas.

BRAVO!: E funcionou? Concluir o filme lhe trouxe paz?
Não por completo. Mas tirou muito do veneno, da pimenta que o problema destilava em mim. Só os loucos se tranqüilizam inteiramente com a consciência da finitude... Ao montar o filme, percebi um aspecto na figura de Santiago que me comoveu e que contribuiu para me apaziguar um pouco. As listas que ele transcreveu durante décadas não têm função prática nenhuma. Revelam-se inúteis, se levarmos em conta a noção de utilidade que costumamos atribuir às coisas. Entretanto, Santiago agarrou-se àquela inutilidade na esperança de engrandecer a própria vida. Deu sentido à sua existência dedicando-se a algo que não é nada. Agiu como cada um de nós deveria agir. Até porque, no limite, tudo o que produzimos acaba se mostrando tão inútil quanto as listas de Santiago. O próprio cinema é inútil.

28 de ago. de 2007

adesivos

Queria inaugurar nessas linhas uma maneira de me repetir: os mesmos adesivos, mas com cores diferentes, para colar pelo corpo. Protegido pelas cores, já não importa para onde os adesivos indicam, quais são seus gritos de guerra, qual a liquidação do mês, não há nudez suportável, toda promoção será castigada. Falta-me corpo para mais adesivos. Aquele cuja cola leva consigo um pouco de seu desejo acolhido. No pátio, fui desvencido. Foi no bafo, figurinhas de cartões-de-visita estranham meu álbum. Estar completo é estar morto. Homens repetidos, quase não consigo trocar com ninguém, parece que todo mundo tem um machismo na sua coleção. Quero mais adesivos, e só isso tem razão de ser. Os de cores quentes, de muita cola, de muitos dizeres. Para que não seja preciso dizer mais nada, para sair na rua e todo assunto informal estar cravado - no elevador, no ônibus, no metrô, corromper a velha prosa sobre o tempo, o presidente decepcionante ou aleatoriedades infernais.
A pele é a memória do corpo, pura solidão essa grafia sinuosa dos poros, dizem envelhecer: a gravidade inscreve, o sol desenha, as cicatrizes reescrevem, a poluição rabisca. Busco minha boca, retomo-a entre o desejo e meu sexo, e te invado para ler cada vocábulo da tua pele.

O corpo é a língua do impossível.

25 de ago. de 2007

relendo

Eu desculpo o filho, mesmo que a única herança que ele me deixe seja meu avô. Confesso teu nome inúmeras vezes, mas nunca sou perdoado. Meu pai ainda não descobriu que eu o inventei. As coisas não são inventadas assim, pondera ruidosamente com suas barbas preenchidas por um rosto sisudo. Solidões em banho-maria, os rabiscos melados de mim. Pai, minha invenção foi um fracasso. Mas se tivesse dado certo, eu estaria órfão agora.

12 de ago. de 2007

somos nós

"Diz-se literatura
É como esse tempo que mistura os olhos abertos e os olhos fechados
Diz-se dele: a infância"
Vicente Cecim, Armas submersas, Viagem a Andara, O Livro Invisível.


Um nariz diante do rosto. É seu sentimento que acolhe o cheiro. Estamos nos repetindo, gritava. Estamos nos repetindo mais uma vez, repetia o grito, mudava a altura do som. Talvez a única coisa que estava realmente se repetindo era sua insatisfação palavreada. Um acerto repetido é clichê, um erro repetido é ignorância. Estranho esse metódo: passam anos ensinando através da repetição, para depois amaldiçoá-la. Ela me emprestou seu nariz para cheirarmos juntos. Emprestou o sentimento do nariz. Um grito, a tensão, a delicadeza quase não tem cheiro. Quando não se sabe, mais se fala. Quando se sente, há oportunidades para o silêncio. O silêncio é um sentimento da palavra. Atravesso o que sou para estar cansado de mim ao te encontrar. Na brincadeira de ir e devir, sou um tropeço da originalidade, um âpendice da inovação. Repito meu corpo e ele sempre me surpreende no desejo por ela. O cheiro do teu carinho. Sofro um erro, que é o mesmo, diferente. Até minha dor é criativa.

1 de ago. de 2007

milésima pensata a morrer no bolso da jaqueta

se não sei onde sou lixo, desconhecerei o que ainda pode ser reciclável.

machado

Xangô está com seu machado apontado para dois passarinhos inscritos na parede, e apesar da sua face valente de quem, a qualquer momento poderá lançar cortante sua arma, ele permanece, como se tivesse inventado uma simplicidade na coragem quente dos seus olhos. Bebo mais um gole de coca-cola e me sinto novamente mundano, mesquinho, rídiculo, transitório. Tenho essa relação de íntima desgraça com essa bebida negra, ela me faz cair na real. Eu não escapei. Não adiantou aquelas tardes vendo ra-tim-bum, os pais comunistas, a escolinha de vanguarda, as poesias juvenis e esperançosas, a detestável e nutritiva sopa durante as noites. Adiantou para me atrasar. Nem piedade alguma caberia naquele jeitinho sensível, sobrevivendo aos ataques dos meninos-machos torcedores do bâea, derretendo-se precocemente na maciez das meninas ilustradas do colégio. Mais um gole desse líquido irritantemente gaseificado. Essas idéias cheias de bordas coloridas, esses abraços apertados, aquele papinho inteligível sobre assuntos aleatórios. Assim, olhando, ninguém dá nada. Eu dei minha vida inteira, e ainda assim, é pouco. Corroendo vida a dentro, a coca-cola reconecta-me com minha ausência, com meu abandono. Desenhei na mão, num inverno estranho, um mapa para chegar naquela casa. Aquela cidade, essa cidade, aquela estranheza, essa estranheza. Lembro de quanto temi o suor apagar minha mais fiel instrução para chegar naquela casa, a casa, não há mais casa. Em alguma estação do metrô, deixei o futuro promissor partir. Na baldeação equivocada, quase não me despedi do menino precoce cheio de apontamentos para sabedorias. Talvez a fraqueza de ser órfão de mim na perda do avô - alguém com olhos de reinvenção para admirar-se no meu próximo passo. Invejava quase-amores. Eu nunca fui quase feliz. Bom colecionador, não tardaria a completar alguma inteireza. Eu me abandonei primeiro, para não correr o risco de ninguém mais o fazer. Orgulhoso, finjo desistência de reencontrar-me. Bebo mais um gole dessa pequena desgraça líquida de rótulo avermelhado. Sinto a trajetória negra tentando me estragar. Aqui dentro, os estragos se reconhecem.


Xangô continua imóvel. Minha sorte é faltar um machado desses. Meu azar, faltar essa inquietante sabedoria, que apenas permanece.

25 de jul. de 2007

aberto!

Então ouço esse tal de relacionamento aberto. Vejo a trajetória previsível desses personagens tão caretas em sua pós-modernidade frenética. Aparentam uma certa felicidade - logo corrijo-me, vejo que esse sorriso carrega um desejo de estar feliz, uma vontade de convencer o lado de fora primeiro, na ilusão do lado interno acabar felicitando-se por tabela. Gosto de observar, são sempre tão bonitos, deixam nos corpos toda sua abertura ao mundo: a liberdade do relacionamento porém concentra-se apenas no sexo. O feitiche e a fantasia sexual, em sua plenitude errante, tornam-se os pilares desse matrimônio sem paredes. No corpo, com bastante esforço, buscam dissolver a angústia fundamental da vida a dois no suor do sexo nômade. Ah, como é bom a liberdade. Ouvi uma dizer, tão bonita a coitada. Liberdade pra ela é apenas transar com quem quiser.

Meu relacionamento também é aberto. Só que é aberto pra dentro.

primeiro instante

Este é um homem pequeno, que demora para escolher uma camisa que não chame muito a atenção, mas que tenha um certo combinar com a calça. Ele cria critérios estranhos para esse combinar - se a calça é aquele jeans presenteado ainda na epóca em que seu armário era uma simbiose entre as possibilidades financeiras de sua mãe e o seu desejo rebeldezinho, então seria necessário uma camisa com cores familiares, com alguma textura esperançosa, tanto para balancear com a rebeldia adolescente da calça, quanto para reconectar-se com sua juventude, sua família, criar um contexto de memória da sua saudosa mãe. Este é um homem pequeno e muito próprio dos outros dessa estatura, não sabe lidar com graça a esse tipo de composição do biotipo. Obviamente ele sabe três ou quatro boas piadas que fazem alusão a possíveis virtudes dos homens pequenos em relação aos demais. E ele tem boa sabedoria para fazer bom uso dessas poucas piadas de modo a não esgarçá-las. Mas, em resumo, isso é uma questão fundante em sua auto-estima. E o torna um homem incomodado. Ao tomar consciência de sua situação de 'incomodada em relação ao mundo', tentou num primeiro momento se engajar a alguns movimentos sociais, três partidos políticos (um de extrema esquerda, outro meia-esquerda e o último era quase um gândula das ideologias), participou de alguns fóruns, grupos de estudo, sites, etc. e chegou a escrever num blog onde ficava dando referências sobre contracultura. Alguns anos depois percebeu, não com pouco custo, desolação e desespero, que em fato ele se tratava de uma espécie diferenciada de homem incomodado. Ele simplesmente era incomodado. Parece díficil explicar isso, como alguém pode ser simplesmente incomodado, então eu não vou usar nenhuma outra ilusão semântica ou metáfora, mas apenas citar situações. Não pelo didatismo, mas para encurtar esse relato. E provavelmente, você reconhecerá facilmente esse tipo. Correndo o risco desse reconhecimento referir-se exatamente a este homem que relato, pois não se tem ciência de um número muito grande desses. No cinema, ele é aquele sujeito que faz cara feia para qualquer barulho: o mastigar da pipoca, o canudo da coca-cola, o abrir daquele pacote de mm's. Com algumas variáveis, além da cara feia, ele pode vir a balbuciar reclamações, e a depender da disposição em que ele se encontre, até um grito anônimo pedindo silêncio é possível. No show de música, ele é aquele sujeito que reclama das pessoas animadas que cantam (com muita animação mas normalmente pouca afinação) e acabam impedindo que ele escute a pureza da voz do artista no palco. Dependendo da sua disposição, caso preserve algum anonimato, ele costuma soltar frases como "eu paguei para ouvir a bethânia", ou "ele não precisa de backing vocal". No restaurante, ele costuma fazer pedidos repletos de exceções e especificidades fora do usual ou do cardápio, e conseqüentemente fica insandecido quando qualquer uma de suas exigências não são atendidas, por esquecimento ou inviabilidade. Existem outras situações, só que mais íntimas, que deixarei para relatar num outro momento. Nesse primeiro instante, esse relato propõe-se apenas a constatar este homem pequeno, colecionando um pouco dos seus tropeços, no intuito de conseguirmos em algum momento, uma maior compreensão sobre sua trajetória.

Cordialmente,
Outro pequeno homem.

19 de jul. de 2007

trecho para um dia futuro

O mais provisório dos homens respirou fundo, deixou o ar chegar até suas periferias mais íntimas, e levantou-se com um semblante repleto de lucidez. Saiu de casa, nem bateu a porta, desfazendo-se do abandono repousado no quarto. Encontrei por acaso esse homem escondido na provisoriedade da sua situação. O mais provisório dos homens tornava permanente seu desejo do próximo dia, do próximo abraço, da próxima possibilidade de vida.

15 de jul. de 2007

qualquer coisa

Triste, escrevo pra fora. Feliz, escrevo pra dentro. Na solidão, eu me atormento. No amor, meu desassossego ganha o mundo.

14 de jul. de 2007

Fabrincando Tom Zé

Tom Zé só é Tom Zé por causa da sua companheira, a Neusa. O pouso do gênio do analfabetismo criativo. Impressionante.

O desassossego na cabeceira da cama

"Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia."

- Trecho 152, Livro do Desassossego, F. Pessoa.

10 de jul. de 2007

Eu fui a Andara e nunca voltei

"Há muito o que se conhecer na literatura contemporânea. Nem preciso desenterrar os clássicos. Existem clássicos vivos e inacabados. O paraense Vicente Franz Cecim é um deles. Caso não tenha ouvido falar sequer uma vez deste autor, desde já o invejo. Sinto ciúme porque bem que gostaria de lê-lo como se nunca houvesse o lido, guardar o mistério fundador, o impacto da primeira viagem. Cecim foge dos esquadros, escolas literárias e questões de vestibular, gerando seus antecessores no futuro. Ele se retira do livro para o leitor ficar à vontade. Instaurou a literatura fantasma, aquela que não morre porque sempre está se reinventando. Seu livro é invisível e os personagens assistem ao relato."

Fabrício Carpinejar

4 de jul. de 2007

vida a fantasia

E se tudo isso for uma grande fantasia que inventaram para me caber, eu digo: morro mais uma vez, mas morro pleno: nunca fui tão feliz numa festa a fantasia.

2 de jul. de 2007

dois meninos da paraíba

Quando um pai morre, não morre um homem: morre uma paternidade. É como se o corpo representasse uma entidade de pai, um corpo de semear.
Um pai nunca é enterrado, ele é plantado. Desimporta qual espécie de pai seja. Quando se planta um pai na terra, ironiza-se a trajetória da própria natureza: tornou-se semente depois de já ter árvore plantada. Sorridente, a mulher do jardim abraçou a árvore órfã com orgulho estranho: é como se ao plantar o pai, ela tivesse qualquer mérito pela filha colhida. Eu, que de tudo que nunca vi, guardo um pouco, não fui homem de achar defeito, também dei um só-riso de volta. Por essas, e nem digo também por outras, fico gestando algumas palavras sobre esse desacontecimento. Gosto quando sinto verbos revirando meu âmago, mas não é fácil lidar com uma dor de barriga que vira dor de alma. Pra acalmar, dou uma respiradinha. E pulo na árvore órfã para fazer um balanço de ir-e-devir.

E o menino de Sumé alcançava a risada daquele pai plantado cada vez que o balanço "caía no céu". A natureza outra vez dá risada: Um menino de Sumé vai, pro outro voar.

Faço de verdade que na Paraíba quem não é poeta, nem homem é. Quando me faltar lugar aqui, já sei pr'onde ir.

25 de jun. de 2007

amor-bobo: escolha

se eu tivesse escolha: queria morrer sentado, com ela no meu colo. como não tenho escolha: posso morrer em pé ou deitado, com ela no meu pensamento.

22 de jun. de 2007

sempre mudando

"Estou sempre olhando para fora
Tentando olhar para dentro
Tentando dizer alguma coisa que seja verdadeira
Mas talvez, nada seja realmente verdadeiro
Exceto o que está lá fora
E o que está lá fora sempre mudando."

Robert Frank

19 de jun. de 2007

fusca



Ambos na direção, com as mãos no volante. Mesmo na repetição dos movimentos circulares, conviver lado-a-lado, os dois como motoristas. Como nos dificultamos em con-viver, inquietos, não importa o caminho. Transcender é colocar esse fusquinha na estrada. Sair por aí com o fusca do parquinho.
O amor é um fusquinha de dois volantes.

14 de jun. de 2007

desordem

De vez em quando retorno ao lugar da dor apenas para saber se está tudo no lugar. Odeio ver minha desgraça bagunçada.

12 de jun. de 2007

guardado na voz dela



Você pela rua é minha assinatura
Sua alegria, minha caligrafia
Seu jeito, meu texto
Sua figura, minha escritura
Seu ar de ausência, minhas reticências
Tudo junto, meu assunto.

Abel Silva

dos últimos cotidianos

.
Reler-se é uma dor gloriosa. Odeio-me nas poucas virtudes das frases ríspidas. Respiro fundo. Quero organizar e dar sentido a esse ódio, tecer esse livro de mim.

..
Minha autobiografia de folhas em branco. Como uma pequena caderneta, para você me anotar de ti.

...
Um casal de namorados saiu da loja com celulares e sorrisos. Quantos minutos de ligações eles terão por mês?

....
Retornar a São Paulo é sempre um tormento. Torna evidente o fato de que sim, eu amo esta cidade. E detesto.

.....
Estou com uma lista de pessoas que preciso ligar, retomar contato, costurar desvios, perguntar como anda a família ou falar do último projeto. Isso nunca me aconteceu. Eu estou doente de paulistite. Respiro fundo. Logo, logo, vai sarar. Saravá.

4 de jun. de 2007

mantra

"A vida é o desejo de continuar vivendo e viva é aquela coisa que vai morrer. A vida serve para se morrer dela."
Clarice Lispector

30 de mai. de 2007

bilhete para nenhum de nós

Como é confortante saber que morrerei antes de minha mãe.

Nunca disse isso, e se ela me ouvir, desminto. A pior desgraça é um filho que parte. Desgraça maior ainda é um filho partido: a metade egoísta não cabe num mundo sem ela, a outra metade sensível precisa concentrar-se na perda como refúgio de não pertencer. Não há pertencimento pra mim num mundo sem sua presença. Ainda que esteja com o corpo respirante, repito: estarei morto. E guardo esse conforto, de morrer antes de minha mãe.

Como é frio esse lugar onde a solidão sobe o morro. Morro só.

A você que me encontrará: saiba que fui sempre muito íntegro a minha desgraça. Sou fiel ao que me dói. A você que passará por cima: não olhe pra trás, porque sempre permanecerei lá. Contamino o outro com arrependimentos. A você que nunca me verá: ao menos, você me leu. Talvez você saiba mais do que o meu olhar poderia dizer. Dissimulado, sou sempre uma companhia insuportável ao que reconheço.

Como é doloroso esse orgasmo que o amor me corta.

Quando sinto que a vida poderia se acabar ali, naquele exato instante: é onde retorno a vida. No encaixe de prazer sofrível, escalar seu corpo iluminado de sombras lindas culmina sempre em uma outra vida: não vida nova, mas vida que acaba de deixar pra trás mais uma morte. A felicidade não sabe falar minha língua. No silêncio das tuas pernas, nos compreendemos.

mi deseo

Meu desejo é o quintal por onde todas as minhas idades precisam atravessar para chegar em casa.

ver imagem: poster (tam. reduzido)

28 de mai. de 2007

pequena crônica sem nuvem

Todo ônibus mente a rota. Sempre temi isso, sempre desconfiei, sempre guardei esse incômodo de descer do ônibus em deslugares, em desmundos. Hoje, o sorriso do cobrador foi o ingresso dessa viagem sem volta. No inverno, o sorriso de um cobrador numa madrugada é como uma estrela cadente: precisa-se fazer um pedido. Os olhos atentos, o espetáculo das mesmices, das rotinas, dos cotidianos. Tanta vida ajoelhada, as pernas já nem sabem o que tem pra andar, pra correr. Uma senhora gorda reclama com a jovem de piercing. "Eu gosto de cinema, mas vou menos do que gostaria". Vive-se menos do que gostaria. O casal atrás me reconhece. Não entendo onde começa um e onde termina o outro. Do lado do casal, um zelador do edíficio Maison de Toulouse, segue pensativo, introspectivo, com olhos perdidos nas cores da rua. Pensei que a gorda poderia reclamar menos, e fazer companhia, ainda que no silêncio, ao zelador. Um zelador de prédio com nome francês deve ser, no mínimo, alguém interessante. O casal sente tanta fome e tanta sede um do outro, que nada é o bastante, tudo ainda é pouco, devoram-se quase sem piedade de sobreviver-se a dois. Voltei pensando nesses personagens, nesses caminhos, no tropeço da jovem ao descer do ônibus.
Nós somos tão imprecisos, talvez por isso não sabemos precisar. Eu não sei precisar. Mas eu preciso, de você. O que não sei tem mais eu do que o resto.

22 de mai. de 2007

Canção em campo vasto

Deixa-me amar-te com ternura, tanto
Que nossas solidões se unam
E cada um falando em sua margem
Possa escutar o próprio canto.

Deixa-me amar-te com loucura, ambos
Cavalgando mares impossíveis
Em frágeis barcos e insuficientes velas
Pois disso se fará a nossa voz.

Deixa-me amar-te sem receio, pois
A solidão é um campo vasto
Que não se deve atravessar a sós.


Lya Luft

20 de mai. de 2007

16 de mai. de 2007

em busca de uma procura

Histórias de abandono tocam nossos próprios abandonos. Uma pessoa sem lugar no mundo acaba ocupando nossos lugares vazios - sombras e questionamentos que tanto nos desabitam. Eu falo de uma menina de sorriso de reinvenção, do sorriso enquanto vocábulo-ponte para ligá-la ao mundo desses, cheios de olhos carentes por saber que rumo ela teria tomado. Finalizo nesses instantes o material que testemunha a confecção desse filme, dessa procura por Janaína. No meio de tantas pessoas, a que menos sabe dessa história, é a própria Janaína. Porque saber é um recurso que jamais lhe abrigou, nunca teve serventia: janaína é pura criação, numa sucessão de abandonos, ela inventou um mundo em seu próprio corpo. Com uma dignidade absurda sua morada em si mesma foi tão profunda que ninguém conseguiu sair ileso de janaína: dos ambientes repletos de crianças carentes, ela rejeitava o colo, ela tinha olhar de atravessamento, ela construiu-se na falta de lugar que tinha recebido. Assistentes sociais, psicólogas, médicos, ela não deixou ninguém ileso. Cerca de vinte anos depois, a memória ainda viva, sabia-se os trejeitos, lembravam-se das canções que ela gostava, veja que espanto: janaína foi mais importante para todas essas pessoas que tiveram contato com ela, do que pra ela mesma. Compartilhei os olhares, fiquei bravo, emocionado, indignado e encantado. Só há esse jeito em mim: ser. Janaína me ensinou a generosidade em seu estado límpido. Lembro da minha chateação quando uma assistente reencontra janaína após duas décadas e com pouco cuidado nem cria terreno algum, já vai dispondo dos elementos da sua memória para tentar estabelecer vínculo imediato com janaína, na afobação, antes do "oi, janaína", ela começou a cantar precipitadamente uma canção da infância que ela tanto gostava. E Janaína me mostrou minha incompreensão. Foi generosa, mostrou como tudo aquilo foi o transbordar do contentamento - para aquela mulher, encontrar janaína era se reencontrar. E é um desconcerto completo essa situação. Tanto que é o abraço delas duas a maior plenitude dessas imagens. Foi quando Janaína se permitiu sair de sua morada e concedeu a "assistente" Maiana um punhado precioso de afeto. Agora, chego a lembrar com doçura da voz rouca da Maiana cantarolando infâncias tardias.
A diretora desse invento, a Miriam, foi minha segunda grande descoberta. Ela foi me concedendo olhar, aos poucos, balançava a cabeça sutilmente, como que esboçando caminhos, e residia sua potência no orquestrar todos esses processos - a finalização do filme em si, do making of - com sua "vida dupla" de psicanalista e documentarista. Dupla aos olhares formais. Pra mim, vida plena, uma história que alimenta e esfomeia a outra. Seus comentários sabiam sempre muito bem onde não gostaria de chegar, concedendo-me assim todo o território das possíveis chegadas.
Não sei bem onde cheguei, sintomático, dentro de uma história repleta de tão pouco pertencimento. Desconheço essa vizinhança que acabo de adentrar, mas reconheço que, onde quer que seja, eu cheguei aqui diferente. Eu também não sai ileso de Janaína.

15 de mai. de 2007

Um “meme” é um “gene cultural” que envolve algum conhecimento que passas a outros contemporâneos ou a teus descendentes. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma.

Minha resposta ao desafio que Sergio me fez.

"Primeiro, desejamos uma mulher que nos faça sentir a Vida.
Depois, queremos uma mulher que nos faça esquecer a Vida.
Por fim, queremos apenas estar vivos."

Desabafo do Alfaiate de Vila Longe
Mia Couto, O outro pé da sereia.


Repasso o meme-provocação-desafio para: Alisson Villa.

14 de mai. de 2007

en canto

Aguardar o que está por vir é não guardar. Esperança, muitas vezes é espera que pouco alcança. Ao inusitado, meu brinde: como é promissor não esperar pelo futuro.

10 de mai. de 2007

6 de mai. de 2007

farinha do desprezo

Mal secreto
Jards Macalé / Waly Sailormoon


Não choro,
Meu segredo é que sou rapaz esforçado,
Fico parado, calado, quieto,
Não corro, não choro, não converso,
Massacro meu medo,
Mascaro minha dor,
Já sei sofrer.
Não preciso de gente que me oriente,
Se você me pergunta
Como vai?
Respondo sempre igual,
Tudo legal,
Mas quando você vai embora,
Movo meu rosto no espelho,
Minha alma chora.
Vejo o rio de janeiro
Comovo, não salvo, não mudo
Meu sujo olho vermelho,
Não fico calado, não fico parado, não fico quieto,
Corro, choro, converso,
E tudo mais jogo num verso
Intitulado
Mal secreto.

- Ao vivo, Jards, Lanny Gordin, Arismar, Teatro Municipal... Arrebatador. Virada Cultural/2007.

3 de mai. de 2007

guardiã do corpo

"O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, mora a casa. "
Mia Couto, na voz do Avô Mariano.

Ele está deitado no chão da sala. No primeiro olhar, uma sala vazia. No verdadeiro olhar, quase não há espaço para nada que não seja delicadeza. Está deitado com um pouco de suor, acabara de dançar horas, sozinho, naquela sala cheia. Uma habilidade inusitada criava coreografias que desvencilhavam-se de todos os móveis que ainda não existiam ali. Casa nova não é nova vida. É nova possibilidade de se habitar. Nova tentativa de morar-se. O corpo não sai ileso, cada mudança são todas as mudanças já feitas. Ao carregar a caixa, não era somente os últimos livros da Clarice, ou ainda os não-lidos livros do Borges. Estão ali também todas as pipas que nunca conseguiram voar no Imbuí, a escopeta que defendeu com muita firmeza a infância em Camaçari, o computador compaq quebrado, as fardas do montessori, do drummond, do portinari - todas rabiscadas com bravatas afetuosas da adolescência, o cd verde do legião e o disco dos trapalhões, entre outras tantas coisas. Maior do que o receio de adaptação ao novo espaço geográfico, é a insegurança do jovem apartamento de dois quartos: em que lugar ele irá me habitar? E, ansiedade própria das jovens construções, terei meu próprio quarto na sua memória?

Ele olha para o teto, onde um lustre antigo e cerimonioso oferta um pouco de luz. Nunca a sensação da moradia tinha feito tanto sentido. Não ter teto é deixar sua identidade vulnerável, por isso tão poucos conseguem resisti-la nas ruas. Quando um homem imprime sua batalha pelo direito da moradia, não são as paredes o principal. Ter uma casa é poder se habitar com plenitude.

Ele levanta, já descansado, e retoma a dança. Do quarto, vem a música. É Bethânia, cantando as palavras de Hilda, assim:

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?

25 de abr. de 2007

no princípio era o verbo

Agarra-te a palavra com respeito e plentiude: mesmo no desespero do silêncio estarás protegido pela possibilidade da linguagem.

O nome dele é Tião.

14 de abr. de 2007

prenúncio

coletando desvios, uma frase escrita no muro de uma banca de revista:

- "os antidepressivos irão parar de funcionar."

13 de abr. de 2007

não é derrota

Uma pequena multidão insana movimenta os braços em sinal de reverência, a mão direita subindo e descendo na identificação do refrão. Talvez a maioria daquelas pessoas ali não tenham ao certo dimensão da importância daquele acontecimento ou ainda, consciência plena daquele refrão. Ou, tenham, mas ainda não sabem o que fazer com isso tudo. Sem mitificações ou demagogia, essa é a realidade. Mas o fato é que aconteceu, e acontece, na cidade de São Paulo, uma tonta e agitada revolução poética vinda das periferias e favelas, do grito de uma juventude eminentemente negra e pobre. Enquanto minhas decepções pequeno-burguesas reproduzem-se, ainda permito-me observar essa cidade com a paixão inabalável que me mantém vivo, firme e forte. O personagem da vez é conhecido por Criolo Doido. Da primeira vez que o encontrei, desentendi por completo o sobrenome. Sujeito de conversa fluída, cheio de associações no pensamento ágil. Ontem, quando ele pegou o microfone, entendi. Ele roubou a cena, assaltou a mesmice dos meus ouvidos e fez minha consciência refém por alguns minutos. Criolo é insano, mas é lírico. Descontrolado, mas repleto de rimas precisas, contundentes, certeiras. Ninguém sai ileso. Dos arranhões até as feridas que nunca cicatrizam, estava ali na frente a poesia contestadora da nossa geração. Saberia ele próprio quão afiadas eram aquelas palavras que saiam de sua boca? E a pequena multidão repetia o refrão, o movimento em reverência criava uma energia emocionante.
É o teste
É a febre
É a glória
Não se corromper
Pra nós, já é vitória
É o teste
É a febre
É a glória
Procure ser feliz
Pobreza não é derrota
Os pensadores ecassílabos e os críticos musicais marxistas cospem a influência americana no rap como um desvio de caráter. Quanta ignorância mal digerida. Só a bossa nova branca pode "beber" de fonte gringa? Nos versos do Criolo está uma perspicaz descontrução do estereótipo capitalista que divide-nos entre "winners" e "losers". Vencer na vida é enriquecer (A qual preço?). Criolo cria um hino da resistência periférica - e está lá, batalhando, criando e abraçando as oportunidades no cenário musical, e é essa sua plenitude. Ao invés de uma demagógica ode a pobreza e suas "virtudes", ele simplesmente honra sua raiz, compartilhando dignidade - peróla rara para todos ali presentes - com aqueles jovens que se identificam nessa luta. Levanta assim o "teste" essencial para uma nova possibilidade de ser e estar nessa sociedade, nesse mundo. Na loucura, a metralhadora não se aquieta. "Pau no cú dos comédia", gritava ele.
Nós somos possíveis e nada está perdido. Até porque, pobreza não é derrota, e ainda tem muitas batalhas para a nossa criatividade vencer. Um pouquinho de lucidez para dar passos firmes ao caminho doido, do Criolo.
Para Pedro Gomes,
com o meu pedido para me abrir novas portas nesse mundo do rap.

1 de abr. de 2007

anotações

Iniciei o processo de edição do making-of do documentário "procura-se janaína" da psicanalista e cineasta Miriam Chnaiderman, selecionado pelo Rumos do Itaú Cultural. Trabalhar com prazer e receber honestamente por isso dignifica o homem. Espero que dê tudo certo.

E eu aqui, em meio a um making-of de mim.

Cumplicidade

A pinga pede o corpo
que pede o chão
que pede o corpo
que pede a pinga
se o corpo cai
equilibra a pinga
que o chão evita
que se derrame
que a pinga prende
o corpo ao chão
que se levantar
evita a pinga
que pede o corpo
que pede o chão
que pede a pinga
e se reerguer o mendigo
a indústria da miséria entra em falência
porque a pinga gera impostos
porque o corpo que bebe
caindo ao chão não incomoda.

De Tião Nicomedes.

28 de mar. de 2007

iluminuras da terra cinza

minha imaginação é uma coleção de brechas iluminadas do cotidiano. essa, acabei de pescar, e não pude deixar a oportunidade de registrar, numa lan house aqui mesmo na Augusta.

"(...) e meu organismo já tá condicionado. Sempre que eu tou descendo a Augusta me dá uma vontade danada de fazer cocô. Aquele banheiro do Unibanco é melhor do que o lá de casa. Tem um papel especial para por em cima da privada, papel pra passar na bunda e depois papel pra enxugar as mãos. E sempre tem bastante papel. Onde que lá em casa vai ter essa coisa toda?"

26 de mar. de 2007

Lo visible es un adorno de lo invisible.

Aunque pierda mi nombre y yo no responda ya a su llamado, volveré siempre al lugar donde tu lo pronunciabas.

Roberto Juarroz

na saída do cinema - unibanco

- para passar o tempo -

A próxima mulher bonita terá namorado.
A segunda próxima mulher bonita será lésbica.
A terceira próxima mulher bonita terá muita pressa.
A quarta próxima mulher bonita terá votado no Maluf.
A quinta próxima mulher bonita terá mau hálito.
A sexta próxima mulher bonita será alta demais.
A sétima próxima mulher bonita será manca.
A oitava próxima mulher bonita estará grávida.
A nona próxima mulher bonita nem é tão bonita assim.
A décima próxima mulher bonita jamais me amaria.

18 de mar. de 2007

choradinha

Recebi de grande amigo, e na voz quente e íntima de Rosa, essa música. Dei uma choradinha de leve. Como um moleque gaiato, correndo de alguém e por alguém, no asfalto irreverente de Salvador. E toma uma queda na ladeira do Iperba ali em Brotas e esbagaça o joelho no chão. Dá uma olhadinha pros lados, e chora com a respiração tensa, um chorinho pra ninguém ver, nem ouvir.

Juras
(Rosa Passos / Fernando de Oliveira)

Jurei te pertencer por toda a vida
Guardar a sete chaves nosso amor
A chave era só uma e foi perdida
O fogo era de palha e se acabou

Jurei não mais amar outra pessoa
Pra nunca mais chorar como chorei
Mas vi que amar é coisa muito boa
E assim mais uma vez me apaixonei

Eu tenho um coração muito indeciso
E juro pra depois voltar atrás
Agora vou fazer o que é preciso
Eu juro que não juro nunca mais

17 de mar. de 2007

a aliança

procurei tantas palavras para historiar esse acontecimento, mas não consegui. estou um pouco seco. não, seco, de secura. mas assim, seco, de falta de ternura.

recebi de mãos que amo, que fumam e que bebem, um pequeno anel dourado. houve um discurso. disse ela tropeçando a intenção, que eu não tinha sido apenas neto. ele não tinha sido apenas meu avô. só abriu a mão quando sentiu a minha, deixando cair o anel pequeno. e dourado. fui dito merecedor. era a aliança do meu avô, retirada não com aquele objetivo que se concluia, mas apenas pelo cuidado para que ninguém violasse o túmulo em busca de um pedacinho brilhoso de ouro. eu nunca visitei o túmulo do meu avô. quase não precisei. eu carrego essa morte como se fosse uma vida que se desfez em mim.

28.04.53
Nesse dia casou-se Maria Antonieta e Olival, mais conhecido como Seu Vadinho.

4 de mar. de 2007

Eu sou quase melhor que você

Esse blog faz 2 anos. Para comemorar, de Maurício Pacheco, aproximada aos meus ouvidos na voz de Moreno Veloso, um dos feladaputas mais geniais desses últimos tempos. É A música.

Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta
Todo mundo sempre tem razão, vence sempre e na hora certa
Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota
Todo homem tem voz grossa e tem pau grande e é maior do que o meu, do que o seu, do que o de todos nós
Todo mundo é referência e se compara só pra ver que é melhor
Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos
Todo mundo tem suingue, é feliz, é forte e sabe sambar
Todos querem mas não podem admitir a coexistência do orgulho e do amor porque
Eu sou melhor que você (Boa Viagem)
Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém
Todo mundo diz que sabe e quando diz que não sabe é porque
é charmoso não saber algo que as pessoas já sabem como é
Todo mundo é original, é especial, é o que todos queriam ser
Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer
Todo mundo ganha grana pra dizer que ela não vale nada
Todo mundo diz que é contra a violência e sempre dá porrada
Todos querem se apaixonar sem se arriscar, nem se expor e nem sofrer
Todas querem vida fácil sem ser puta e com reputação
se reprimem e começam a dizer:
Eu sou melhor que você
Mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém

2 de mar. de 2007

Vanzolini é São Paulo

Chorei
Não procurei esconder
Todos viram
Fingiram pena de mim
Não precisava
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava
Chorei
Não procurei esconder
Todos viram
Fingiram pena de mim
Não precisava
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava
Um homem de moral
Não fica no chão
Nem quer que mulher lhe venha dar a mão
Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá volta por cima
Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá volta por cima.

27 de fev. de 2007

tris, tris, tristeza, minha alteza.

Encaixotou metade da vida. A outra metade, enfiou meticulosamente em sua grande mochila. Aquela mochila era praticamente sua memória. Nas laterais, já passaram meias de duro inverno, conchas de doces praias, cuecas sujas de leve amor. Os homens enraizados em seu cotidiano esbravejam por alguma liberdade, folga nos contratos e compromissos. Ele observava com pouca atenção esses homens, ainda com sua dificuldade em ver a beleza de estar exatamente assim: no limbo dos rumos, na tranversal das perspectivas, com o hálito da cachaça branca daquele último boteco. Perdido só está, aquele que em algum momento obteve direção, rumo, ordenamento. Dessarumando o passado, sentia-se novo em folha, como se tudo fosse possível. Trocaria essa infinidade angustiante de possibilidades, os elogios nublosos e os tapinhas nas costas recheados de bons futuros, por um punhado de vida que lhe coubesse a mão. E fosse deslizando entre os dedos, onde pudesse ir gradualmente mergulhando e desesperando-se com a vida, sabedor de cada grão descorrido e sem segunda chance para ser vivido. Sem esse punhado, nas mãos vazias, escorriam rios de uma solidão a transbordar os dias. Sentia a solidão como uma aceleração brusca no relógio da vida, mas que passa cada segundo numa profunda lentidão, como se uma vida inteira fosse capaz de ser corrida em cada uma das brechas. Na solidão se envelhece. Nos outros instantes, se amadurece.

Colocou mais uma vez a mochila nas costas e partiu. Seu limite era sempre a tentativa de não incomodar o cotidiano desses gentis que o abrigava. Ao sinal de um desconforto, as alças da mochila tremiam em sede pelas costas. Aquela mochila era mesmo sua memória. Partiu, mais uma vez, ansioso por um novo guarda-roupas.

22 de fev. de 2007

No túmulo do samba

Terça-feira de carnaval, noite nublada, uma rua atrás do cemitério. Em irreverência ao mestre Vinicius, não caberia outro cenário para aquele acontecimento. Reunidos na plenitude da rua, em frente ao palco armado, díficil precisar quantos, todos em seus sambas imprecisos, sedentos por uma São Paulo mais humana. A São Paulo oficial ainda tentou, nos seus tentáculos enferrujados, implicar dificuldades, mas a iniciativa persistiu, e fez-se um dos melhores carnavais de rua que essa cidade pôde presenciar. Vinicius, aqui é o túmulo do samba! Fazemos carnaval atrás do cemitério! Estás certo, Vinicius. Só não sabia ele que aqui o samba não morre no túmulo, renasce. E ele renasceu, ali na Rua Horácio Lane, reduto do ó do borogodó. Aos baianos e aos pernambucanos, aquela rua transbordando pessoas, talvez não venha a ser novidade, mas foram esses, de tantas cores, raças e estirpes ecônomicas, que sambaram, junto com os paulistas, maravilhados com essa nova possibilidade nessa terra, corpos grudados, suados, humanos, fogosos, falantes, irreverentes. Um jovem de camisa de time alvi-negro ainda tentou balbuciar qualquer tipo de desavença, ainda acostumado com outras aglomerações, mas foi rapidamente silenciado de uma maneira tal que ele nem hesitou em render-se ao ritmo instaurado ali. Nessa terça-feira de carnaval, São Paulo foi uma terra possível. E Fabiana Cozza, porta-voz da possibilidade. Entre uma música e outra, fui atentando e colhendo elogios inebriados para nossa Fabi. Com sua grandiosidade no palco, não há como desvencilhar-se do fardo: Fabiana é a rainha do samba paulistano. Fiz eco ao título efusivo, e só sai ileso quem ainda não presenciou sua voz, seu carisma, sua postura e sua alma emanando no palco. Xangô te ilumine, minha irmã querida.

O ano começou com o pé direito. E o esquerdo. E o direito. Assim, num samba.
Axé, São Paulo. Axé, Fabi. Saravá!

o ano começou

Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado
Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro


Dele, pra variar. Belchior.

15 de fev. de 2007

12 de fev. de 2007

classificado sem-vergonha

Procura-se um emprego.

No escritório:
Escrevo cartas, bilhetes, pequenas notas sentimentais em guardanapo (mídia de bar) ou por e-mail (mídia digital). Eu sei lidar com as texturas, cores, volumes e sentidos das imagens, seja no imaginário, na memória, seja no papel, na tela de um computador, projetadas na retina.

Na cozinha:
Faço vitaminas excêntricas e coloridas. Sei fazer molhos para massa, avermelhados, apimentados, encorpados, experimentais. Faço strogonoff, lasanha, arroz integral com todos os temperos da casa, feijão mesmo sem panela de pressão.

Na varanda/sala:
Sei dançar desengonçado, invento coreografias disléxicas e espontâneas, sem compromisso com o ritmo, mas muita responsabilidade com a alegria, com o suor, com o que há de ritualístico na dança, principalmente no samba. Forjo meu corpo e sou capaz de passar por bom dançarino em diversas situações. Além disso, sou um exímio cambalhoteiro: Anos de experiência em conjunto de um velho parceiro mineiro me fazem dar cambalhotas com extrema habilidade.

No quarto:
Aprendi com 13 anos que não se diz "eu sei beijar". Porque beijar é uma harmonia, uma sintonia, é uma permissividade da alma através da boca. Digo então que beijo, que me permito. E do beijo, vem o prosseguimento. Sei permitir as paixões através do corpo. Os carinhos na trajetória do desejo, torta, tonta, sedenta, fulgaz. Ao prazer, o sentimento pede plenitude.

*
Sou baixinho, baiano, as vezes meio bravo, as vezes meio tímido. Estou em situação um tanto desesperadora, por isso a pretensão salarial é demasiada humilde. Posso trabalhar em finais de semana (não todos, porque preciso ir no Biu de vez em quando).

7 de fev. de 2007

árvore kar wai

Seguindo os ensinamentos de 2046, dos antigos orientais, fui até um lugar distante, procurei uma árvore, abri um pequeno buraco e contei um segredo. Quando estava a tapar o buraco, a árvore me pareceu responder, retrucando meu segredo, que agora nem segredo é mais. Disse: "Acho que preciso que alguém me salve".

A árvore respondeu: "eu também".

Pro dia nascer feliz

Como sair ileso? Esse país tão ostensivo e atordoado em seus vínculos tão inconsistentes, porém tão afetivos, singelos. Somos jovens, perdidos, desbocados, incoerentes, mas somos belos, dessa beleza delicada, o filme do João Jardim trata da delicadeza tonta da juventude, no Brasil, mas também universal ao adentrar na dificuldade cada vez mais opressiva de colocar-se ao mundo, de pertencê-lo, situar-se, encontrar-se. Meu choro acuado na sala de cinema, vendo a palavra, a literatura, a poesia, iluminando a vida de uma jovem gordinha no interior de Pernambuco. Essa "personagem" é de uma beleza tão arrebatadora, dentro do seu contexto áspero, que tira o fôlego. No filme, inevitável também refletir sobre a glória e a desgraça da profissão de professor, nesse país. E daí parte a navalha da minha memória, reunindo meus mestres, o gosto de lembrar-me neles. A professora na Montessori que indelicadamente se emocionou com minha redação. O professor de história no Drummond que batizou poeticamente a minha racionalidade, me fez crer na magia do aprender, a surpresa do conhecer. No Portinari, a professora de português que marcou com ferro e fogo a língua e a linguagem na minha vida e de quebra, me proporcionou o teatro e a poesia, os pilares da minha trajetória. E o professor de redação, que soube iluminar minhas brechas de simplicidade no meio da incoerência prolixa da adolescência. E até na faculdade, o professor de teologia que me aguçou a sensibilidade ao humano. E o charme da professora de mídia, que sem saber, me fez acreditar no que eu faço.
Sai do cinema maravilhado e profundamente triste. A jovem na periferia carioca que escrevia apenas quando estava triste. O choro burguês e lindo da jovem do alto de pinheiros com seus pequenos dilemas, pequenos e lindos. Uma demanda ao caos, tanta falta de oportunidade.

Nem a morte me emprega.

Ainda somos possíveis.

* *
O filme.

2 de fev. de 2007

Dia 2 de fevereiro

Nessa data, meu fervor líquido no fluxo de Yemanjá, a incontestável beleza azul esverdeada do amor e do feminino - incerto, errante, vagas e vagas, ondas e epifanias espumantes. Um louvor a Yemanjá, com a intenção saudosa do Rio Vermelho, o bairro onde eu me fiz gente. Nesse mesmo bairro, hoje também está a pairar a outra metade da minha saudade e da minha celebração: meu pai, em sua serena sede por mais uma nova idade. Eu sou eu e minhas circunstâncias, inevitável assim? Abraço-as e permito-me no mar das minhas circunstâncias. Saudade das birinights, da cachaça violentamente baiana e dengosa, dos passos tortos na Mariquita, da ressaca e do abraço que ganha terreno cada vez mais nos braços desse que, num tropeço, calhou de me fazer existir. E não deixo barato, existo até a última gota, na imensidão do mar e seus barquinhos repletos de flores, alfazemas e outras devoções. Para mim, 2 de fevereiro é quase como meu aniversário. Aquariano, filho de aquariano, filho de Yemanjá. É como brindar minha existência. Irrecuperável é a falta de coragem, jamais o tempo atrasado das relações, dos conflitos dos homens, do pai e filho que permutam papéis em sua verve de intercâmbios. Celebrar isso é festejar meu pai, e saudar meu avô. Aqui, agora, momento de passar água nas partes que vão ficando pelo caminho ou, principalmente, são levadas nas incursões do coração.
E eu me permito, saravá mô pai, esse ser errante e passional. Há a dor, mas no intervalo entre uma e outra, a epifania da paixão.

Axé.

28 de jan. de 2007

passion

Na Grécia antiga, quando um homem morria, apenas se perguntava:

Ele viveu com paixão?

Morto, sua vida e história irá responder. Mas ainda vivo, é preciso respondê-la cada dia.
Eu vivi hoje com paixão?

23 de jan. de 2007

ani versário

Eu estou velho.
Igual aquela vez em que entrei no parquinho e a moça gorda falou: "Só pode criança pequena nesse balanço". Nunca me senti tão velho, nunca senti tanto peso. Minha infância nunca mais foi a mesma, eu nunca mais fui o mesmo. E cheguei até aqui, velho.
Meio velho, mas menino.

p.s: Tom Zé diria "o amor é velho, velho e...menina". Aliás, meu companheiro aquariano, São Paulo fará aniversário quinta. Parabéns a nós.

22 de jan. de 2007

Senhor do Bomfim com presságios de Xangô

E é aqui neste meu pequeno altar emancipado que celebro quase sem forças uma antiga reza para o deus que nunca veio, o santo que nunca soube, orixá que desarmou-se. Entre todos esses amores, relíquias bagunçadas, lembranças de um tempo quase sagrado, não fossem tão profanos meus desejos. E mesmo quando falta a promessa, uma fitinha cor-de-rosa, uma prece vazia, é nesta oração da dor que ainda percebo o quanto estou vivo e sou o resto de tudo que amei. É com o que ficou, demônios de mim, pelos olhares dos amores que passaram. O que permanece, angústia de não poder ir além, de também tomar algum rumo. Ao não me dar um Deus, meus pais me deram um carnaval deles. Há um bloco melancólico e não ouço senão a cuíca. É ela, saravá senhor, que vem me proteger da auto-piedade e da lamentação ventosa, é sempre o som dessa cuíca que chega junto a morte, que carrega o amor que parte, assovia ao túmulo e acena, para que a cada término seja lembrado todos os términos, para que a cada dor seja sofrida todas as dores, e para que o próximo passo tenha a força de todos os outros dados para se chegar até aqui. Junto novamente os joelhos, e invento essa reza antiga, não por gaiatice, é que na invenção guardo minha raíz, o que é ancestral, o que crio com essa sinceridade inventada é o que tenho de mais antigo, de mais. E miro os olhos enfermos de tanta razão e clareza - já prenúncio da próxima tempestade, sedento pela nebulosa: amar é por demais turvo. E qual não é minha felicidade dolorida em me reconhecer em cada história. Os cachos amarelados, aqueles cabelos adolescente e confiantes, a língua do gosto de um beijo tenso, a radiografia antiga desconfirmando paixões tão cheia de ossos, a excitação do sexo pleno, vadio, glorioso, os souvenirs de viagens em que praticamente nunca voltei, os móveis estragados que o próprio exército da salvação recusou enquanto doação. Estão aqui, todos os olhares dos meus amores, passados mas que aqui são permanecidos em louvor, observando carinhosamente aquilo que posso ser. Amém, Xangô. O amor enxerga o que ainda serei. Eu vejo demais o que deixei de ser.