24 de dez. de 2006

London, London

Existe esse pequeno exílio particular que se cria no meio da sua própria pátria. Saravá.

While my eyes go looking for flying saucers in the sky
I choose no face to look at, choose no way
I just happen to be here, and it's ok
Green grass, blue eyes, grey sky
God bless silent pain and happiness
I came around to say yes, and I say

11 de dez. de 2006

trecho projeto final graduação puc-sp

trecho das considerações finais

(...)
O conhecimento e a consciência das desigualdades sociais que estão infelizmente enraizadas no nosso país sempre foram, desde a infância e juventude politizada direta ou indiretamente em virtude de ter sido criado por pais com forte ligação política dentro de partidos e movimentos de esquerda, já era um fato dentro da minha trajetória, porém, o contato com Sebastião revelou-me não informações novas sobre essas questões, mas percepções diferentes, a poesia inabalável de um homem em exercício pleno dos seus sonhos e convicções. Nesse movimento, a referência e o exemplo de Tião é muito mais do que “um homem que foi pro nada e conseguiu voltar”, mas é a precisão lúcida e sensibilidade com que seu olhar repousa sobre os problemas sociais que se banalizaram na nossa sociedade, sua sinceridade quase lúdica de se tornar exemplo para os outros, mas admitir continuar na busca da reconstrução de sua auto-estima – “Tião é mais para os outros do que pra ele mesmo”. E os mecanismos para que a abordagem sobre ele não se equivoce parecem ser criados por ele mesmo: retira o chão para heroismos vazios, mitificação de sua história de vida ou excesso de valorização sobre seus feitos. Tião apareceu em revistas semanais de grande circulação, em programas de TV, jornais, entre outros. Ao passear pelas ruas em sua companhia, não foi raro o comentário “te vi na revista” ou “te vi na tv”. Ele sabe a importância que a mídia pode ter na divulgação dos seus ideais, entende que o holofote sobre Tião Nicomedes põe luz também para as questões sociais que ele tanto luta, mas sabe também do risco que todo esse circo carrega, da espetacularização, e de maneira espontânea vai afirmando a integridade de sua identidade e subjetividade.
As ruas do centro de São Paulo agora não são mais as mesmas para mim, tornaram-se mais humanas, minha percepção sensorial do centro enriqueceu-se. Os carroceiros me parecem hoje pequenos anjos sujos voando baixo pela cidade nas suas incongruências e que, talvez sem muita consciência, transformam o Brasil no país que mais recicla em todo o mundo.

(...)

10 de dez. de 2006

6 de dez. de 2006

presente

"Coração mistura amores. Tudo cabe."

Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredes, pág. 171.

A semente

"A criatividade é o recurso mais fecundo com que o homem, desde sempre, procura derrotar os seus inimigos atávicos: a fome, o cansaço, a ignorância, o medo, a feiúra, a solidão, a dor e a morte. Em cada esquina do planeta, em cada fase da sua evolução, a criatividade humana consegue atribuir uma forma ao caos, um significado às coisas."

Domenico de Masi

28 de nov. de 2006

Texto para apresentação da exposição dela

“Quando algo é belo, examine-o com cuidado em busca de uma verdade oculta.”
George Bernard Shaw


A memória é nossa fantasia e toda história que precise recorrer a ela, será fantasiosa, mas não necessariamente falsa. Acredito que ao pegar o atalho certo, a memória pode contar verdades especiais.


Quando fomos comprar sua primeira máquina, um homem branco e pálido desnudou o pinto da pequena câmera quase como um cafetão trêmulo. Fazia um frio delicadamente malvado - aquele frio que anuncia o inverno de maneira sádica. Então tentei falar qualquer besteira com o homem que esbravejava pouco jeito em seu francês áspero e impaciente. Enquanto eu o distraía, ela ganhava tempo para finalmente conversar reservadamente com a máquina. E minha destreza só foi em guardar na memória as primeiras palavras que trocaram aqueles dois amantes em pleno balcão da loja de fotografia. Não falaram absolutamente nada, aparentemente. A câmera foi embalada, seguimos nosso trajeto. Eu, ela e aquela câmera, acomodada sem seu pinto, dentro da caixa.

Na infância, alguns brinquedos são verdadeiros deuses, orixás. A boneca de pano é uma pequena nossa senhora encardida e torta. O carrinho vermelho é Xangô dando voltas no mundo. Com o passar do tempo, buscamos alguns outros correspondentes para aqueles rituais, mas geralmente não obtemos muito sucesso. É comum então, mesmo já adultos, reagirmos como naqueles tempos: viramos crianças grandes e bobas com nossos brinquedos na mão. Talvez Ingrid não tenha tido uma infância normal. O fato é que ela não se comportava como uma criança que acabara de receber sua pequena divindade personificada num brinquedo, na câmera nova. O olhar é um desespero, o enquadramento de cada olhar, uma angústia. Ingrid parecia muito mais uma mulher que acabara de descobrir um delicado e íntimo jeito de se relacionar com o mundo. Descobriu seu orgasmo peculiar, um jeito de ser, um alívio para permanecer. Acredito que não se deve falar sobre a fotografia de Ingrid. Pode-se falar sobre Ingrid. Pode-se falar sobre a fotografia. Mas a relação entre essas duas mulheres deve ser sentida, muito mais do que falada. Palavrear essa fidelidade promíscua de sensações – olhares, enquadramentos, desespero e angústia – é quase como tentar impôr regras sobre a brincadeira, horários determinados para jogar bola. Como bons pais, talvez seja realmente inevitável. Mas acho que esses olhares que essa pequena senhorita Mara Cruz Klinkby reuniu convida-nos a irresponsabilidade.

Quando revelado, esses olhares, há uma intimidade que se expõe – e toda exposição desse tipo é por demais cara. Desses olhos inquietos, ela nos apresenta aqui sua particular e delicada pornografia poética. Permitam-se.

P.S. Para conhecer a fotografia dela.

5 de nov. de 2006

bocejo

A morte noticiada é quase como um bocejo. De maneira que foge do controle o bocejo daquele homem ali, meio alto e com cara de pão sírio, gera um bocejo quase que reclamando a antologia de um sono que não existe, a insônia deixando pegadas pelos dentes. Então a notícia da morte, mesmo essa, quase longe não fosse a proximidade da palavra, reclama de outras mortes, sem controle, a memória boceja ao coração outras mortes, outros sonos, são meus dentes. E quando ele morre dormindo, a notícia sem sono chega acordando sem cabimento as gavetas sem verniz. Então, bocejo, sinto esse sono doloroso da morte, e logo depois retorno. Daniel morreu um pouco das minhas mortes também.

"Afinal , quem sou?
Como traduzir-se
quando a tradução
pode ser a mais pungente morte
da arqueologia de mim
a sete chaves secretamente embalsamada?"

Daniel Cruz Filho

21 de set. de 2006

O homem vazio e a mulher sem calcinha - II

La femme
Não me importo de estar com o nome sujo. Eu não acho que meu nome seja sujo. Isso é uma conspiração, para você se sentir suja, imunda, nojenta, e pagar esses porcos em dia. E se estiver sujo, que mal há nisso? Sujeira é vida, é coisa nossa, coisa do corpo. Suor me dá tesão.
Mas eu sou realmente angustiada, essa ansiedade, eu tento fazer o exercício que a terapeuta ensinou, mas não consigo me controlar, parece que está tudo aí demais, pisco o olho e sai do meu controle, tá aí, ali, aqui, que merda. Acho que aquele filha da puta gostoso tá olhando pra mim. Mas que filha da puta. Totalmente filho da puta, se não fosse gostoso eu mesmo daria um chute nos bagos dele. Ai, mas que filha da puta, tá olhando pra mim. Corno. Dá vontade de casar com ele só pra cornêa-lo. Corno gostoso. Maldito. Eu não tenho problema com homem, digo, assim, não sou feminista. Óbvio que gosto de homem. Meu problema é com filho da puta. Ai, que angústia. Preciso ser salva. Algum idiota tímido e intelectual, algum poeta cretino e cavalheiro, algum bunda mole meigo, porra, se ninguém aparecer eu vou acabar dando para aquele filho da puta gostoso.

L'homme
Eu acho o silêncio uma coisa tão bonita, mas assim, tão frágil, sabe? Qualquer barulhinho arranha o silêncio.

13 de set. de 2006

O homem vazio e a mulher sem calcinha - I

la mujer
Ele não vai me reconhecer. Gosto de contar mentiras, gosto, mas sou fiel. Não é fácil ser mentirosa e fiel. Ele vai saber. Ele ou aquele outro ali. Acho que qualquer um que olhar pra minha cara vai saber que eu estou diferente, irreconhecível. E que sou fiel. E vou dizer que sou mentirosa logo na cara, para não perder o hábito. Preciso ser sincera logo no ínicio. Odeio esse papo de 'estou surpreso' ou o último 'jamais imaginei que você pudesse fazer isso'. Eu sou pobre mas faço terapia. Impressionante como me sinto mais mulher, mais pessoa, mais sabe assim, sei lá, essa coisa plena apesar das dificuldades. Graças a minha terapia eu não uso mais calcinha.

el hombre
Eu gosto de conversar. Mas é...não sei, tenho pouca coisa pra falar, me incomoda essa coisa de 'jogar conversa fora'. Prefiro guardar pra usar direito.

trechos de um presente

trechos da crônica "o amor acaba" de Paulo Mendes Campos.
insuportavelmente maravilhoso.

"(...) uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

6 de set. de 2006

O que fizeram com aquelas tantas lágrimas?

Eu chorei quando Lula se elegeu. E eu não sou de chorar. Estive pensando nisso numa das poucas vezes em que coincidentemente, jantei num boteco que tinha TV e olhei para cara desse Lula.

E, agora, bebendo palavras pela internet, completamente embriagado na madrugada, lá pelas tantas na Carta Capital, uma reportagem de uma tal Ana Paula Sousa, diz que Estamira - outra que não é de chorar, também chorou no dia em que Lula foi eleito.

Eu, Estamira, e tantos e milhões de tantos.

Não há uma conclusão, agora vou dormir - frio e seco.

27 de ago. de 2006

Macanudo



Descobri o argentino Ricardo Liniers através do blog da Rita Apoena. E agora estou profundamente encantado com seu trabalho, tanto que já estou a encomendar os livros com suas tirinhas. Não sentia tamanha emoção desde quando ganhei meu livro com Toda Mafalda.

25 de ago. de 2006

tia chaui

"A paz não é a simples ausência de guerra. Uma cidade na qual a paz depende da inércia dos súditos deve mais corretamente ser chamada de solidão que de cidade."

Marilena Chauí

+
p.s: Tenho pensado em dar nova moradia para esse blog, lá: http://www.chadeideias.com.br/blog. Quando for verdade, avisarei.

22 de ago. de 2006

santificado seja o vosso nome

- Quanto custou o seu Pai?

Ele olhava os movimentos rápidos da minha mão e ia absolvendo aos poucos cada exagero na volúpia de estar diante do próprio Pai. Abaixou o rosto, perdeu alguns olhares, mas ainda em tempo retomou a fala com a pouca afetividade dos homens masculinos machos. Nossa concordância é pela palavra que falta, e não nos damos conta, quase um pecado seria procurá-las. Uma certa angústia cultivada nos últimos anos tira o fôlego da conversa quando ela ousa comunicar-se pela respiração, ao não se contentar com as palavras, lapsos e seus vocábulos anasalados. Ele me admira como uma súplica, perdoa a si próprio por ser meu pai. Eu contabilizo os desvios em comum e, como de costume, perco-me entre números para não chegar aqui. Esse pai que também é meu custou-me quase uma vida inteira. Guardo com afinco o troco que restou.

16 de ago. de 2006

sol

Sempre é tarde quando chego. Num vilarejo da África que reside na Bahia, para perguntar que horas são, diz-se ‘que sol é este?’.

14 de ago. de 2006

quote

Policial 633: Você gosta de música barulhenta?
Faye: Sim. Quanto mais alto melhor. Assim, eu paro de pensar.
Policial 633: Você não gosta de pensar? O que você gosta então?
Faye: Nunca pensei sobre isso.

Amores expressos, Wong Kar Wai.

7 de ago. de 2006

A guerreira anônima contra o Trocadilo



Estamira quase não é ela mesma: É este corpo cansado, negro, envelhecido e entristecido pelo 'trocadilo' cruel da vida, esse ser da espécie homem par. Esse corpo parece observar a verdadeira Estamira, que está além, que está em todos os lugares: A palavra firme, a lógica imbatível para organizar o caos do mundo dentro do seu vocabulário surpreendentemente rico e assertivo, a clareza mística e lúcida que inventa sua subjetividade em contexto tão adverso e a pertinência às vezes tão agressiva que sua visão crítica repousa.
Marcos Prado é verdadeiramente um fotógrafo, mais do que um cineasta. E somente um fotógrafo como ele poderia ter feito esse filme, poderia ter tido a paciência e a perspicácia para realizar este documentário. As palavras de Estamira poderiam ser por si só fonte de reflexão. Mas a imagem que Prado escolhe para abraçar essas palavras são envoltas da mesma matéria abstrata ("A criação toda é abstrata. Os espaço inteiro é abstrato. A água é abstrato. O fogo é abstrato. Tudo é abstrato. Estamira também é abstrato.") que compõe a fluência 'estamírica', o místico e o sagrado.
As reflexões que ela suscita são de uma amplitude assustadora: da questão dos lixos, consumo desenfreado nas metropoles, até a religião, seu poder sobre os mais pobres, passando pelos conceitos que permeiam loucura e lucidez. Estamira põe, mais uma vez, em cheque os limites e a complexidade que pode envolver o conceito da loucura. Sua lucidez é tão agoniante que se relaciona intimamente com a loucura. Mas Estamira trabalha no Jardim Gramacho. Não seria leviano afirmar que outros personagens, tão loucos, tão lúcidos e tão inventivos já passaram na história dos homens - pares e ímpares - e deixaram seus legados registrados nos códigos universais de cultura - literatura, música, etc. Para Estamira, segredada pela miséria, coube a Marcos Prado registrar-lhe a genialidade. Estamira. Esta mira. Mira. Em espanhol, mira é como "olha". Este olhar. Esta mira é um "este olhar" feminino. Par. Até porque, depois do filme, fiquei imaginando que olhar é realmente uma palavra feminina.
Ela é um grande exemplo de auto-valorização de sua subjetividade em meio a tanta desgraça e infortúnio, resistência de uma identidade que se fez forte nas suas circunstâncias.

Ao final, uma frase que me permitiu voltar pra casa. "Tudo que é imaginário, tem, existe, é."

Saravá, Estamira. Obrigado Marcos Prado.

http://www.estamira.com.br

2 de ago. de 2006

tricolor

Possuo esse desvio de caráter: sou amante do futebol. E mais: torcedor ferrenho do São Paulo. Foi nessa cidade que aprendi a admirar o futebol, quando criança. Cada gol é um grito envolto de felicidade e admiração.

Meu caráter é mesmo formado por desvios.

29 de jul. de 2006

cidade bairro rua

Inteligências paralelas. Sensibilidades transversais. Vum, vum, é, é, pô, pô, pá. Trânsito humano, trânsito desumano, carros. Arr. Flerte. Tecidos, malabares. Bam, bam, ui, ui, foi. Vaza. Moleque. Molho de gente, leque sem opções abanando cinzas. Você quase foi. Você estava quase para ir. Educado. Educação. Comunicação. Gentil. TV. A próxima novela é a mesma novela. Que novela! Essa vida, laços de família repleta de celebridades, anjo mau, senhora do destino, veja, veja, páginas da vida burguesa carioca: Veja. A revista. A entrevista. Não me alistei no exército, Suplicy é lerdo. Heloísa Helena não funciona na novela das oito, botem ela no planalto. Central. Do país. O país. Pá. Engarrafamento masculino. Sim, é ela. Certeza? Só pode ser ela. O sinal vai abrir. Vai abrir. Nunca mais viu, nunca mais vimos, nunca mais. "O tempo deixa cego os fatos que o desrespeita".
Desistir é seu jeito de insistir, de permanecer, de estar? Desistiu de responder.

Na Rua Martim Francisco, nada demais.

18 de jul. de 2006

verde esculpir



A sombra esculpe um sentimento. Retira a luz de tudo que não fizer parte desses dois. Apenas os pescoços separados: porque o canal da voz precisa carregar individualmente a palavra, ainda que seja partilhada, como palavra de amor.

3 de jul. de 2006

novamente, joão cabral

final de semestre, brincadeiras resultantes na faculdade.

http://cabezamarginal.org/vitor/puc/trabalho_maplog.htm

trecho de um trabalho apresentado na faculdade

Atualmente, presenciamos uma série de iniciativas em relação a literatura, no Brasil e em outras partes do mundo, que operam por dois caminhos: incentivar a leitura e fomentar a criação literária. Nesse primeiro aspecto, governos, ministérios e instituições culturais tem investido energia no intuito de criar dispositivos para o auumento e o estímulo do “gosto” pela leitura. E essa é uma questão presente não só no Brasil, país que ainda se debate com fortes espectros do analfabetismo e uma notável deterioração no ensino público, mas também, recentemente, em países europeus, como é o caso de Portugal. Nossos irmãos lusitanos servem aqui de exemplo não pela nossa união linguística, mas pela repercussão dessa iniciativa do governo português para incentivar a leitura entre as crianças. A respeito dessa iniciativa, o escritor luso mais importante da atualidade, José Saramago, proferiu sua franca e espinhosa opinião: “Ler sempre foi e sempre será algo para uma minoria. Não vamos exigir de todo mundo uma paixão pela leitura.”
A polêmica levantada por Saramago toca em um dos cernes de todas essas iniciativas, governamentais ou não. Qual deve ser o papel da literatura na sociedade? Objeto de Arte? Entretenimento cultural? Inegavelmente elitista?
Num viés ainda mais tímido, oficinas literárias vem alastrando-se, com maior enfoque na classe média mas já com iniciativas com público de baixa renda, carregando o intuito de fomentar a criação literária. E já há uma movimentação de escritores contemporâneos para pressionar o governo em prol de medidas públicas de incentivo a criação literária.
(...)
A linguagem permeia nosso cotidiano. O exercício da escrita e o exercício da leitura é sobretudo um exercício de linguagem, que em primeira estância não deveria se preocupar tanto com a formação – quantitativa – de leitores e escritores, mas entender a importância dessa linguagem na formação de cidadãos e mais, na construção de subjetividade, na potência que esse instrumento pode protagonizar, e isso é válido para sujeitos independente de suas profissões ou vocações.

(...)

26 de jun. de 2006

180

Incansáveis, estavam ali novamente dando voltas em torno de si mesmos. Então perceberam que seus si mesmos não estavam mais no mesmo lugar quando retornaram, inviabilizando a completude da volta. Alguém blasfemou dizendo: se não foi volta, foi um rodopio. Um homem velho com rosto terrento de sempre cair ao peso de seu próprio tempo advertiu velhosamente: deixem de gangúnias, tempo é a pele do vento e arde nesse sol. Se a volta não se completa, que esperamos para dar uma reviravolta?

O homem velho morreu antes de completar 180º.

Era o Verbo

Fabrício Carpinejar - Sua obra é um elogio ao silêncio. Acredita que desaprendemos a residir na linguagem (não mais a habitando poeticamente)?
Vicente Franz Cecim - Esse é o equívoco: o Equívoco: nós não habitamos a Linguagem, ela é quem nos habita. Apesar de todos esses séculos de Literatura não teríamos aprendido nada? Ainda não entendemos o que significam as palavras: No princípio era o Verbo? O verbo está em nós, e não nós nele.

25 de jun. de 2006

se mente

"- É egoísmo, próprio de imaturos, pensar só nos frutos, quando se planta; a colheita não é a melhor recompensa para quem semeia; já somos bastante gratificados pelo sentido de nossas vidas, quando plantamos, já temos nosso galardão só em fruir o tempo largo da gestação, já que é um bem que transferimos, se transferimos a espera de gerações futuras, pois há um gozo intenso na própria fé, assim como há calor na quietude da ave que choca os ovos no seu ninho. E pode haver tanta vida na semente, e tanta fé nas mãos do semeador, que é um milagre sublime que grãos espalhados há milênios, embora sem germinar, ainda não morreram.
- Ninguém vive só de semear, pai.
- Claro que não meu filho; se outros hão de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo, por outro lado, do que semearam antes de nós. É assim que o mundo caminha, é esta a corrente da vida."

Raduan Nassar em Lavoura Arcaica.

23 de jun. de 2006

samaritano

A dor diagnosticou rapidamente o médico: incurável.

dia logo

Ele
Sempre me encantei com seu olhar de menina-moleca. Só não podia imaginar que ela ainda costumava brincar. Trocara bonecas e bonecos por pessoas.

Ela
Nunca pertenci completamente a ninguém. Ainda custo a aceitar que você passou a ser apenas alguém.

14 de jun. de 2006

aliança



Um anel prata. A mão solteira do corpo contorce pelo brilho da prata. Fiel como o corpo, está presente em cada desânimo, cada carinho rídiculo ou gesto arrogante. As unhas mal cortadas atestam o esmero pela displicência, o repouso da energia em outras atividades, certo descaso com os dedos até pouco tempo virgens. Aquele anel de prata rasgou-lhe a tristeza com a rara súplica do gozo na primeira transa: permitiu novamente a força ausente naquela mão. Atesta neste dedo errante a mais consistente criação já feita por essa mão: o amor.

7 de jun. de 2006

Inventou o inventar e ventou

Pois já foi nosso tempo de línguas várias, línguas vindas, oriundas, descidas e subidas, línguas de muitos paladares e muitas distintas palavras. Mas aqui, com o tempo, toda essa infinidade de línguas múltiplas precisou lamber-se umas as outras, misturar-se, inchar os sentidos, alargar nomes de coisas, somar palavras. Aqui toda aquela riqueza de línguas de fala tornaram-se em sotaques. Transformamos assim nossos dialetos em sotaques. E aí ganhou-se esses jeitos todos de falar, mas não veja mal nisso: não corrompem a língua, de contrário, a seduzem, nesse caminho traquejoso, com ritmos, entonações novas para aquelas mesmas palavras de antes.
Explicação de Seu Feidão sobre a língua

Na cabeça de Vidigal Primeiro, dono daquela Fábrica no Brás, sotaque era um despautério, um pecado, uma lascívia. Era palavra sendo desnuda, desavergonhada, sofrendo e contorcendo-se pelos limiares da boca, arisca, afoita, anasalada, às vezes quase sexuada. Vidigal achava aquilo um completo despropósito. Não permitia sotaques ali, na fábrica. Era como se alguém mostrasse suas vergonhas e ao falar passeando pela fábrica, desfilando seu sotaque, era como se desfilassem suas vergonhas, seus próprios corpos desnudos. E aquilo agredia de alguma maneira, não se sabe como, a crença e o respeito dos demais. Vidigal não permitia o sotaque. Vidigal queria o respeito imperando na Fábrica. Na Fábrica se falava a língua seca.

5 de jun. de 2006

-edos

a Vida

"Primeiro, desejamos uma mulher que nos faça sentir a Vida.
Depois, desejamos uma mulher que nos faça esquecer a Vida.
Por fim, queremos apenas estar vivos."

Desabafo do Alfaiate de Vila Longe - Mia Couto* em "O outro pé da sereia"

Mia Couto estará comentando seu novo livro e presitigando o lançamento no Brasil, nessa terça-feira (06/06) no Sesc Vila Mariana, 20h.

29 de mai. de 2006

micropolítica do desamor

O líquido é tão rubro, intenso, brilhoso. Há um vigor em seu caminhar. Jamais alguém poderia achar-lhe corrosivo.

Era tanto amor que derramou.

23 de mai. de 2006

espoir

"Em vida quando o esperávamos ele aparecia?
Pois agora quando desesperamos ele também não desaparece."

Mia Couto, "Um Rio chamado Tempo Uma casa chamada Terra" (P. 183)

14 de mai. de 2006

vendaval da mente - II

Ele reuniu pequenos sopros para medir isso que lhe dirigia os passos: esse profundo nada. Apesar de não ser táctil ou vísivel, era capaz de mover, derrubar algo ao passar, locomover sua própria existência.

Percebeu, suspirando, como se nesse movimento aspirasse um pouco de seu próprio fio condutor, o que lhe acontecia.

Sua vida era isso: como o vento, um vazio que se move. As vezes até dessarrumando um pouco por onde passa.

13 de mai. de 2006

pequena nota sentimental sobre meu avô

O homem mais sincero que conheci em nenhum momento admitiu verbalmente que povoara minha infância com um certo tipo de fantasia e invenção que, em visão mais cética, poderiamos chamar de mentiras. Esse homem entendia a sinceridade como uma relação de amor e respeito com o que dizia - suas memórias inventadas, ficcionadas, porém retratadas ao seu interlocutor atento e diminuto com o carisma da veracidade. Assim, até mesmo como entende o próprio Houaiss em sua definição, o que ele entendia por sincero era uma maneira de exprimir aquelas histórias "sem o artíficio nem a intenção de enganar ou de disfarçar algum pensamento ou sentimento". Minha formação primordial no universo da criação foi justamente por esse caminho - o avô, o homem sábio que descontraidamente trafegava pela paternidade de maneira irresponsável, podendo chegar ao âmbito da amizade e cumplicidade com destreza e facilidade.

Quando meu acesso aos códigos verbais se deu, e, posteriormente, meu fascínio pelas possibilidades inventivas que poderiam surgir a partir do meu mínimo domínio sobre aquela linguagem escrita, minha reação foi de profundo êxtase e certa familiaridade. Ao inventar seu passado, e me contar suas peripécias pelo sudoeste árido baiano, meu avô estava me ensinando uma literatura cheia de saliva. Nossos diálogos - com ou sem palavras - ganharam um novo valor depois que li Guimarães Rosa. Olha aqui, grafado com a magia da língua escrita, aquela poesia torta que nos animava junto ao álcool fluído de nossos copos. Nossos corpos.

Gosto de anotar o motivo, cada vez que me lembro de meu avô. Mesmo depois de morto (ou como diziamos, "depois de ido"), ele ainda é a minha maior frequência literária. O motivo de hoje foi Mia Couto. É impressionante como o avô mariano de "Um Rio chamado tempo, uma casa chamada terra" o traduz. Meu avô inventava histórias de um passado que não existiu, assim, de fato, existindo somente na palavra. Eu continuo a inventar histórias de um avô que não existe mais, assim, de fato, existindo somente na minha memória.

4 de mai. de 2006

2 de abr. de 2006

19 de mar. de 2006

1 ano

Uma amiga querida dos tempos de colégio e que me redescobriu através das coisas escritas aqui nesse blog me alertou para um fato: hoje faz um ano que criei esse caminho aqui. Um ano de blog. Passaria desapercebido, mas fiquei tão contente por ela, lá de longe, nos estados unidos, estava atenta e me lembrou o fato. Isso aqui são reminescências dos dias que não acontecem. Pelo menos não nos calendários.

"Antes só do que mal-acompanhado é o que falam os mal-acompanhados que nunca estiveram só."
Mario Lúcio, músico do Cabo Verde.

17 de mar. de 2006

Walser

Robert Walser (1878-1956) abandonou a escola com quatorze anos e levou uma errante e precária existência enquanto escrevia poemas, artigos, histórias e romances. Em 1933 entrou num asilo por insanidade e permaneceu lá pelo resto de sua vida, e parou de escrever. "Eu não estou aqui para escrever", dizia ele, "estou aqui para ser louco".

13 de fev. de 2006

rascunho de terra

Ela está cavando os dedos. Não permite a unha errar. Profundamente pele sobre terra. Algo determina o ritmo. Quase musical. Busca variações, mas atenta para sintonia do movimento. Ela cava os dedos com as mãos enterrando-se. O homem está observando sonolento tudo aquilo. O homem é irrelevante. Ela tem relevos. Busca cavá-los. Eles se amam. E terra. Enterram. Soterram. Erram. O quintal é imaginário. O jardim é plano em comum, demorou 5 anos até ganhar os sonhos. Não há flores visíveis. Nem mesmo ao olho complacente dos sonhos. Eles se amam tanto. Foi preciso então irem juntos aquele jardim. Ele está sonolento no sonho. Porque dorme de pé. Porque sonha acordado. Dormem na mesma cama, sonham em quartos separados. Foi preciso então chorar essas lágrimas sem gosto. Ela descansa um pouco. Eles se amam, não muito, nem pouco. Eles se amam a exata medida que foi possível. Eles amam-se dentro da possibilidade. E chamam isso de amor porque é o único vocábulo confortável. Ela cavou todos os dedos. Agora, pronto. Ele deita seus pés sobre o buraco aberto. Ela cavou seus próprios dedos para enterrar os pés dele. Ela suspira como se soubesse que aquilo não era apenas um sonho. Doeu, um pouco, ela alerta, com os olhos. Ainda dói, ele complementa, de olhos fechados.

Sobre

Era a pessoa certa. Na hora certa. Mas os minutos estão sendo errados.

10 de fev. de 2006

temp

"Pela idade, há muito tempo que sou um velho. Mas só pela idade. Trabalho com a mesma vontade de sempre, a imaginação ainda não desertou de mim, compreendo melhor o mundo em que vivo, sou consciente do valor da vida, e, quanto à morte, ela chegará no seu dia, nem antes nem depois. Quem morre aos 20 anos, morre na sua velhice e não o sabia. "

José Saramago

23 de jan. de 2006

23 / 23

"O tempo é o maior tesouro que um homem pode dispor. Embora, inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento. (...). É o nosso bem de maior grandeza, não tem começo, não tem fim. Rico não é o homem que coleciona e se pesa num montoado de moedas, nem aquele devasso que se estende mãos e braços, em terras largas. Rico só é o homem que aprendeu piedoso e humilde a conviver com o tempo. Aproximando-se dele com ternura, não se rebelando com seu curso, brindando antes com sabedoria, para receber dele os favores e não sua ira. (...)"

Raduan Nassar, Lavoura arcaica.

8 de jan. de 2006

2046 - Wong Kar-wai




2046 é um teste de fidelidade que Wong Kar-Wai imprime sobre quem o assiste. Resgate, reinvenção e retorno de personagens, histórias e situações de seus filmes anteriores. Aos fiéis, dos quais me incluo, resta certo cuidado ao sair do cinema. Estou zonzo. Aliás, essa é a palavra da vez: zonzo.

"Sabe o que as pessoas faziam antigamente quando tinham um segredo? Subiam numa montanha, procuravam uma árvore, abriam um buraco e sussuravam o segredo nela. Depois tapavam o buraco com barro."