31 de out. de 2005

226


Terminei. 226.
Era o número de azulejos azuis. Esperei alguns instantes, mas ninguém tinha visto, ninguém para parabenizar. O banheiro fedia o mofo do quarto. Então os cabelos reiniciaram seu cotidiano hábito, pedindo perdão ao shampoo. A sala tem gordura da cozinha. O almoço esfria o corredor e desabotoa a carne das saias. As saias vestem primas desejosas. No corredor, passos lentos, correr é uma ousadia contra o chão encerado de Dida. E concede o atalho para fora, mas ainda dentro. É a varanda, que nunca admitiu ser cemitério dos brinquedos, chegando a cuspir crianças pra dentro da casa. O barro molhado nunca saiu completamente das mãos. Nenhum joelho saiu ileso do mármore que une a sala ao corredor. Apenas o silêncio vergonhoso das visitas comentava aquela união promíscua. Os joelhos são sempre os móveis mais antigos. A mão é a cômoda que mais tem a falar sobre a morte. Pronto. E todos sentaram para jantar. Não houve variação no cardápio. Sopa de tudo de ruim, batido no liquidificador. A mãe era a família inteira na mesa. Era por isso, que, às vezes, ela não podia ser mãe.

Foto: Tatiana Cardeal

28 de out. de 2005

antiga história reencontrada nos papéis

O corpo só dói, de verdade, uma vez na vida. As outras dores apenas compõem a história. Era esse o ensinamento de Elias. Nunca satisfeito fui. Deveras voltei. Nem todo amor veio para amar, explicava-me. Há os amores que vieram para isso, aí. Então apontava com seu dedo sujo. Não era sujo de sujeira. Era sujo de si. Porque nada que sai de si pode ser considerado sujeira. Pensava ele. Nem os excrementos. Saiu de mim, gritava ele, fedido. Elias não era louco. Eu também não era louco. Elias era meu companheiro de nada. Quando não havia o que fazer, era Elias que compartilhava comigo, isso, esse angustiante tempo nulo. Não havia monotonia. Era suor, que pairava nos trilhos. Não saber para onde se vai, e correr, não saber o ritmo da música, e dançar. Elias disse que aquele amor não havia mais. Puxou um resto de ferida e me deu o cascão fazendo pose de nagô defecal. Senti, ali, naquele mísero e maldito instante: Iansã cuspiu meus pecados e tinha mais fome do que barriga. Catei meus miúdos como se fossem búzios. E pedi para Elias decifrar pela língua de gente ignorante. No caso, de gente eu. Pedi para não enrolar nos detalhes. Esse canto que embebeda. Me conte desse amor que não se ama. Elias ficava lindo quando falava de maneira com sabedoria. Mas Elias só foi lindo aquela vez na vida. Eu chorei da sua lindeza. Quando ele abriu a boca, já havia até redemoinho na lágrima. E continuou. Nem todo amor veio para amar. Parece até uma coisa distante de entender. Mas é perto, de tão simples. Existe sim o amor que não consegue amar. O amor que não consegue. O amor que é incapaz ou incompetente. O amor que é derrotado antes de levantar a mão. O amor que é desafinado mesmo sem nunca ter aberto a boca. O amor que está ali, quieto. E só se sabe amor, porque mesmo quase inexistente, é inconfundível. Está lá. Bebendo com Deus a cachaça da saudade do que nunca virá.

04.03.2003

22 de out. de 2005

não entenda. apenas tenda.

a boa notícia é que temos poucas más notícias, hoje.

não, não estamos bem. mas nunca estivemos tão bem mesmo sabendo que não estamos bem, antes.

"o cinema argentino fala de coisas que podem acontecer em qualquer lugar, mas são feitos somente na argentina. o cinema brasileiro fala de coisas que só acontecem no brasil, mas podem ser feitos em qualquer lugar."
Não é para discordar ou concordar. Apenas fiquei pensando a respeito.

14 de out. de 2005

de tanto bater meu coração parou - notas íntimas

É primavera de algum outubro ou as folhas também possuem livre-arbítrio?
Os dedos estão surdos, por isso sentem melhor o teu cheiro. O barulho anônimo e incessante esforça-se em vão. Mas os dedos continuam, valseando essa opereta como se nem vestissem mãos. O tempo não teve fôlego para subir até aqui. O vento subitamente fecha a janela. Não sei mais sobre a personalidade desses que, até então, não tinham vontades próprias. No silêncio, não há mais como a valsa desafinar. Os dedos perdem a leveza. Herdam os acordes do corpo inteiro, e pesam. O ínicio da dor trás consigo certa curiosidade. Mas logo passa. Os dedos surdos não ouviram os gemidos, os berros, nem o pedido implorando a pausa: pare, pare por favor. Por não lhe matar, eu salvei sua vida.

a secreta paixão pela mão



A ponta do lápis da imaginação. Anteparo da queda. A extremidade do tato. O silêncio do corpo. O vestido do rosto. O desejo concentrado. A cortesia forjada. A varanda da janela. O ínicio do amor em 5 dedos por beijo e 24 toques por segundo.

A mão.

Wong kar-wai, a sútil e perspicaz voz que vem de Hong-Kong.

12 de out. de 2005

mon petit maître

"O erotismo é a chave que desvenda aspectos fundamentais da natureza humana, uma vez que se encontra no limite entre o natural e o social, o humano e o não-humano."

Georges Bataille

10 de out. de 2005

erô(s) tori



Não foi bondade sua. Era seu pavor pelo desperdício. O seu corpo sempre esteve a mais, lhe sobrava a alma. O sexo, pura gulodice, as coxas fartas. Você me dava o que sobrava em ti, com o desejo reciclado.

p.s: Pinturas do filme Eros.

lição sobre arte

"La perfection est atteinte non quand il ne reste rien à ajouter, mais quand il ne reste rien à enlever."
Antoine de Saint-Exupéry

tradução rápida: "A perfeição não é alcançada quando não há mais nada para se adicionar, e sim quando não há mais nada para se retirar."

9 de out. de 2005

acordei o sono da semana passada

Em nenhuma alameda dos jardins
Jamais vi Iboipeba florir.
Corri seus carnavais desengonçados
E seus homens de paletó, rosto firme
e o meu, de dar dó
Ah, eu ainda Morro de São Paulo
Me enterrem na quarta praia.

a vaidade do ego é vermelha


São Paulo, 2004.

Meu rosto é pequeno, só com uma mão dá para escondê-lo. Mas precisei de um corpo inteiro pra esconder minha alma.

5 de out. de 2005

moradia e moranoite

não sei em quantas casas já morei. não foi possível ser redundante. pais separados, moravam de aluguel, depois filho precocemente desgarrado, morando aqui e ali. foram casas, apartamentos, quartinhos. eu morei mais na mudança do que nas casas. um dia fui fazer minha mala e me senti em casa, como há tempos não acontecia. quando não é possível mudar de casa, eu mudo de mim. estou morando num vitor de dois quartos agora.

3 de out. de 2005

poemeto bobo

me ensine, por favor, a ser pai
que eu te ensino, com louvor, a ser filho
me ensine, meu avô,
a ser homem
de barba-feita
cabelo penteado para trás
gravata com aquele nó que não mais se faz
me ensine a caminhar, sem tropeçar
e quando cair, a levantar
me ensine a não chorar por qualquer desvio
e quando chorar,
me ensine a nadar
borboleta
e voar
me ensine, por favor, a amar
e não fazer desse sentimento
mais um brinquedo de montar
não quero mais ler tantas instruções

p.s.: esperando godot - a melodia.

1 de out. de 2005

breve receita para emudecer

1. before sunrise + before sunset



2. Hoje, de Moreno Veloso, na voz de Gal Costa, último cd.

"Eu posso esquecer,
Para ser mais feliz
Mas não vou mudar nada
De tudo que eu fiz.

É só não pensar em nós
Como a melhor parte de mim.

E eu quero chegar
A um dia dizer:
De tanto ficar só,
Vivo bem sem você."

*
Eu fecho os olhos para beijar. Mas, às vezes, esqueço, e fecho junto meu coração.