23 de jul. de 2005

arquitetura da saudade

"Os pilares devem estar dispostos de maneira a constituir uma fresta por onde a luz entre formando uma atmosfera simétrica e pertinente dentro do ambiente."

As lembranças devem estar dispostas de maneira a constituir uma fresta por onde a memória entre formando uma atmosfera simétrica e pertinente dentro do ambiente.

...

Minha saudade é uma favela.

19 de jul. de 2005

Auto da Paixão

"Adeus povo, adeus campo,
Aceitai minha despedida
Espinhos soltos no chão
Mistérios presos no ar
Não desejei este cajado infinito
Anuncio a tua vinda.
Herdeiros do fim do mundo
Queimai vossa história tão mal contada."

18 de jul. de 2005

coliformes sentimentais

Ele

- Não precisou pertencer para existir, umedecer pra salivar, sobreviver para sofrer, nem sumir para se esconder.

Ela

- Um cafajeste fiel a solidão.

15 de jul. de 2005

Algumas pessoas sobre a mesma história - I


Depois do passado, do presente e do futuro, quê mais será preciso para o tempo desistir de medir minha altura? Silêncio, temos visitas. Quem é? Esses. Ora, mas esses estão sempre por aqui. É verdade, mas somos educados, devemos compostura. Moramos num silêncio alugado, e esses visitantes-inquilinos são nossa cara taxa de condomínio. Se fosse mensal, e não diário, talvez não fosse tão angustiante. Um desses tem ciscos de lamúrias no canto dos olhos, seu falar, mesmo quieto, rebaixa o ânimo de todos. Já estou cansado de esperar a juventude, disse dessa sina. Nasceu com uma idade sem fome, permaneceu sem vento ou chuva, desde sempre existe num lugar que secou o tempo. Era vísivel como gostava de conversar comigo. Evitava, mas qualquer bobice que eu escorregava, tinha moradia em sua admiração. Fui salvo pelo canto desafinado da gordinha que fazia parte do grupelho. Era uma gordinha cantora e portuguesa, ou seja, das primeiras vezes, quase a pedi em casamento tamanha emoção, mas depois, cansava-me o vocabulário sempre refém da saudade. E ela percebeu meu desdém. Perguntou-me, como quem denunciava-me de insensível, se eu não sentia saudade. Não, eu sinto sede. A portuguesinha calou-se implorando piedade. Não faltei com a verdade. Se a senhoritinha começar a chorar aqui eu vou te por no olho da rua, recebi o aviso de despejo do tio Bambo. Fiquei triste com o risco de cegar ao relento a qualquer lágrima da gordinha de Lisboa. Calei-me. Queria voltar a lhe perguntar sobre minha altura. O porteiro me consolou com alguma piada. Não, não era piada de português. Mas pelo interfone não consegui entender a graça. Voltei e sentei ao lado do senhor sem idade. Você não sente falta de comemorar aniversário, perguntei, apenas para mudar o vazio da prosa. Vai ter torta de morango no meu enterro, respondeu, juntando alguma felicidade.

O futebol e a emoção rouca

Em todas as comemorações, hoje, eu sempre me recordo da primeira. Com 8 anos de idade e uma paixão pelo futebol inventada, já que não foi herdada por nenhum familiar como acontece de costume, lembro do mestre Telê Santana na beira do estádio, arquitetando aquele time que contava com Raí, Cafu, Leonardo, Palhinha, Zetti, entre outros. Eu me transformo em outra pessoa, foi o que me disseram. E é verdade. A cada gol, um grito. E a comemoração na Avenida Paulista, incluindo as cenas tristes dessa irracionalidade do futebol, o confronto com a polícia militar - instituição irracional por excelência. Foi um jogo absurdamente lindo. O primeiro grande título do São Paulo desde que eu me mudei. Somos tri-campeões da Libertadores da América. Ah, se toda essa manada desembestada tivesse consciência do significado lindo que dá nome a esse troféu.

13 de jul. de 2005

Prestes? Maia.

Uma movimentação intensa e muita discussão. Movimento dos Sem-teto na capital Grayscale. Debates. Até que subitamente surge uma menina, sobe na armação metálica e grita com a mulher que está com microfone na mão.

- Mas mãe, eu não me importo de não ter teto. Queria é ter uma cama só pra mim.

O menino e as palavras

. Gostava muito das palavras que minha mãe dizia. Do meu pai, preferia as palavras que ele não dizia.

11 de jul. de 2005

1999, Tribos Jovens, Porto Seguro-BA

Teu olho é afiado. Pode furar, mas pode acariciar também. Às vezes piso no chão, mas na maioria, sou terreno pro chão caminhar. É firme esse teu corpo miúdo. Bem firme. Mas não faz de teu corpo casca. Faz flauta. Deixa o som sair.

7 de jul. de 2005

Conversas com L - II

É essa? Só há essa. Não cabe pergunta, então. Você pode escolher com quais e com quantos dedos você vai tocar essa realidade, mas não pode escolher outra realidade. Passado isso, é lenda, é bobagem, é sonho. Os meninos com barrigão, mas todos desnutridos. A barriga ficou cheia de tudo que não puderam comer. E os peixes que dormem no barro seco.

Mas tua barriga alimenta outras fomes.

6 de jul. de 2005

Egoísmo coletivo

Trecho de roteiro (longa-metragem) em desenvolvimento.

"Aqui a desgraça não tem dono. É de todos. O mundo é isso e a gente tá mais perto do céu. Comunidade forte não entra polícia. Ninguém aqui cheira, porra! A gente só vende. Quem tem que cheirar e se fuder é esses filha-da-puta lá de baixo. Antes de ser brasileiro ou carioca eu sou do morro Dona marta!"

4 de jul. de 2005

As paredes conversam um teto

- Sabe qual é meu sonho?
Às vezes até me espanto com minha perspicácia: era evidente que eu devia me calar diante da pergunta, e, logo em seguida ao silêncio, como se tivesse rezando para algum Deus, mostrar-lhe na minha face toda minha fé pela resposta que estaria por vir.
- Eu queria saber sonhar sem cansaço.
Respondeu. E pronto, era isso. A literatura não mudou o mundo, o cinema não mudou o mundo, a arte não mudou o mundo, Deus não mudou o mundo, a esperança - ainda espera a mudança do mundo, ninguém mudou o mundo. Mas o homem mudou, eu me repti, perdi a roupa, o pudor, fiquei nu, estava tão consistente entre aquelas paredes, o pequeno era toda a humanidade que eu já tinha visto. Sua história não interessa, não vou passear pela sua biografia porque para isso o preço a se pagar é caro demais: deixar-se adentrar. Era tarde demais. Eu fui socorrido pelo eco do pequeno. Falei de mim. Contei que eu era gente mas um dia fiquei com preguiça e virei aquilo. O pequeno ria de minhas bobagens. Eu sou bom de bobagens. Eu poderia viver de bobagens. Há emprego para bobagista? Não há. Nem quero. Bastava-me aquele teatro lotado, o público em pé, tudo isso concentrado nos olhos e no sorriso do pequeno. Não me intimidei com a platéia e falei de muitas bobagens, principalmente as bobagens de Jequié, a capital das minhas bobagens. O pequeno virou um sorriso. Tentei procurar o amargo novamente para não me corromper. O chão estava arado, capinado. A terra estava macia. E então o pequeno veio. E pisou. E se sentiu feliz para contar.
- É que cansei. Eu sonhava antes, sabe? Mas cansava muito. Acordava e nem conseguia correr, nem fazer o dever, nem ajudar mãe. Todo suado, pai ainda brigava pelos panos que davam de molhar da água de meu corpo. Parei. Era muita coisa, tanta coisa, quase não cabia tudo no sonho.

A breve biografia do pequeno era minha obra completa.